terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Estudo nº 2


Eu abro a porta,

Ela sorri a minha gentileza

Com seu batom discreto

 

Rosto claro

Cabelo preto

E olhos de carbono

 

Colo claro,

Lábios brilhantes

Salto agulha

 

Diz que me ama

Eu digo “está tudo bem,

Onde vamos?”

 

É um lugar afetado

O mais perfeito vinho

E sutilezas no cardápio

 

Depois olhamos para as estrelas

Ela diz estar segura ao meu lado

 

Seu corpo perfeito

Uma tatuagem discreta no pescoço

Vestida apenas pela luz da janela

 

Eu toco nos seus sonhos

Ela diz que sou único

Depois vai para o espelho

Toma um banho e deita ao meu lado

 

Eu espreito a penumbra

E  não consigo sorrir

Enquanto ela me afaga

 

Estou só

Eu e minha lembrança...

 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Segredo (conto)



Ela disse que era preciso falar algo. Fomos até um bar onde as mesas ficavam na rua. Não fazia calor nem frio. Uma temperatura mediana para uma noite medíocre, sem estrelas e sem grandes perspectivas. Parece que toda a situação que iria se desenrolar fosse velha conhecida. É como pegar um livro para reler. Aquela noite me parecia um livro relido. Eu estava desanimado, imaginando a cena patética. Sim, por que a cena seria patética, com direito a choro e ranger de dentes. E realmente havia um segredo por trás do olhar. Ela, vestida com uma calça cinza desbotada e uma blusa azul e um olhar de desconforto, que tirava um pouco do viço de seu rosto cor de leite.

E lá ficamos, sob o fundo opaco daqueles pensamentos, murmurando reticências. No vácuo de palavras langues, ela sem coragem de desabrochar seu segredo. Os copos libavam a noites sem estrelas e toda palavra perpetuava o silêncio maior. As palavras perdiam-se no ensaio do verdadeiro motivo de estarmos ali. Delicadamente, pontualmente, um cigarro ardia nos lábios e a conversa seguia úmida, tímida e pontuada como um salmo cantado a esmo.

Desgostando do teatro desgastado, gestos e farelos verbais, saí do mórbido estado de desânimo e impetuosamente proferi:

- Tuas palavras matizadas com a tinta mais abjeta sequer escondem a decomposição do teu olhar. Então a tua hombridade ruiu triste nas curvas da noite! Teu corpo disse ao silêncio o que teceste em desconforto! Vamos, rebenta por cima de mim este dejeto que fere teu espontâneo ser! Eu já vim preparado.

- Tu já sabes, disse ela... mesmo não sabendo. Serei a última pessoa que conseguiria te enganar - pois vês a ressaca turva dos meus olhos, sentes a pestilência de minhas lacunas sinistramente emaranhadas em uma preleção ao abismo... Deus ou Diabo, este vinho é amargo e forte, meus lábios se quebram e doem só no pensar em te dizer... Em verdades, poucas, queria falar o que não precisaste ouvir, por isso te convidei a este desencontro.

- Então é verdade que a perfídia osculou nossos pomos? Então é verdade que o teu corpo que não era meu evolou-se, definitivamente, a distâncias mitológicas?

Silenciei. Sorvi um copo inteiro de vinho, que parecia ter gosto de plástico derretido e sorri. Um riso avulso de homem traído que perdeu vergonha de sê-lo. Os olhos dela assemelhavam-se aos de um boi melancólico, prevendo seu abate. Calmamente libertei minha mágoa áspera, sem sangue ou rubor:

- Por que fazer tempestade de tais estilhaços que, juntos, nunca perpetraram nossa efetiva união? Jamais conseguimos sermos íntimos um do outro. Havia mais do que roupas escondendo nossa nudez, havia mais do que saliva no beijo cúmplice e havia minha comunhão com o silêncio no orgasmo, esse brinquedo de dez segundos... Enfim, desconhecemo-nos e não há tempo que mostre quem somos um para o outro...

- Tuas palavras me fazem liberta. Há uma bela civilidade no teu exprimir-se, no teu aceitar! Espanta-me, todavia, este corte frio e sem rancor dos teus lábios. Pensei que haveríamos de discutir um pouco a desarmonia de nossas almas, de nossos corpos...

- Esperavas minha dor e te magoaste com minha indiferença? Não sou indiferente. Odeio apenas a imprecisão, o escuro onde não sabemos se é excremento que se prende em nossos sapatos. Tens de mim esta experiência com a vileza alheia. Nada me apavora. Só não vivo a remoer incertezas. Agora tudo se clareou: és uma vadia. Aceitas mais um copo de vinho?

- Agora foste longe demais! Um pouco de polidez com a minha honestidade de te expor tais abjeções! Se te chamei para este encontro foi pela vontade de ser mais transparente possível contigo.

Ela estava exaltada, seus dedos tremiam. Nunca a vi dessa forma. Sempre parecia tão segura. O que esperava que eu fizesse. Caísse aos seus pés com o peso da sua traição. De repente eu quis atiçar seu fogo maldito. Brincar com a sua vergonha, explorar sua humildade com gosto de culpa. Até por que eu era o corno da história:

- Conta-me como foi esta nova experiência. Foi homem ou mulher? Ambos?

- Não me atormenta que eu vou embora...

- Eu até preferia que me tivesses trocado por uma vulva. Digo-te de coração! Pelo menos algo que eu não posso te ofertar. Ou dois membros fálicos simultâneos, coisa que jamais poderia te dar, por questões fisiológicas e, também, por eu ter certa aversão ao ato sexual com mais de duas pessoas.

- Tu és um porco. Dilacerando minha integridade de revelar-te meu deslize...

- Mas adivinhei por teu olhar rançoso. Esconderias o quê? Há muito tempo tua alma e teu corpo se abriam com parcimônia, teu céu e teu inferno emaranhados no olhar culpado e distante, no desprazer. Tua vulva fria e inócua, latejando o crime. Faz dela agora o que bem entender! Expõe como arte pós-moderna pro teu bel-prazer, que eu sou indiferente. Põe cores vivas em teus pelos pubianos, piercing nos lábios da tua adorável flor carnívora e carnuda, dá mais e mais vida para teu atrativo maior...

- Quer saber de uma coisa: conheci um homem. Enfatizo a palavra homem. Quando, depois da tempestade vislumbrares o espelho, lembra o que agora te digo: Homem! Não uma criança afeita às púberes impressões do crepúsculo, as enfadonhas crises de ordem existencial. Ele me acende, me bate, com a força de um herói helênico semeia meu corpo com um calor branco e sacro, explora lugares que nunca te ofertei por não seres herói sequer da tua malfadada insônia. Eu não preciso da tua afetação merencória, dos teus desgastados carinhos. Quer de saber algo mais? Vai pra puta que te pariu.

- Agora sim, mostra-te sem disfarces...

- É isso mesmo, e digo mais: não és pederasta por falta de coragem, que te resguardou de mais esta distorção. Mãos delicadas, livros, um eterno cansaço às coisas práticas da vida.

Eu por dentro achava graça, tudo que ela sempre quis dizer, uma torrente de desafeto...

- Tenho nojo dos teus beijos, nojo das tuas cuecas sem elástico, nojo do barulho que fazes quando escovas os dentes, nojo da tua família, das tuas músicas pernósticas, da configuração imunda do teu apartamento, nojo da baba no travesseiro enquanto dormes. Profunda raiva do teu silêncio, desse teu maldito olhar desanimado, das tuas indolências estóicas, dos teus sábado à tarde, do teu vício por cinema europeu, desta tua altivez de ex-plebeu vingativo, da tua barba mal feita, dos teus olhos doentios no prazer fugaz de um cigarro.

Eu não podia levar a sério aquilo tudo. Desesperos de uma jogadora imberbe. Eu terminava outro copo de vinho. Pedi outra garrafa e cinzeiro para a garçonete que atendia com cara de nojo. O chão já estava cheio de tocos de cigarro. Se resolvesse contá-los, teria o tempo que tragávamos naquela insólita brincadeira. Acendi mais um. A fumaça era leve, o aroma do tabaco, queimando lentamente, era o tempo que não cansava de queimar, era ela, que queimava e se desfazia em cinzas pelo chão, se desfazia em fumaça flácida como um pano etéreo, plúmbeo, exalando tristeza e raiva do olhar. Enchi o copo dela. Estava melancólica. Pegou um cigarro do meu maço. Acendeu com mãos imprecisas. Tomou o que lhe restava em seu copo num único gole. Pegou a garrafa e encheu novamente...

- Fala alguma coisa, pelo amor de deus! Disse ela.

- Se houvesse algo mais para dizer, mas resumiste a questão.

- Não te magoaste com o que eu disse?

- Claro que não! Eu esperava muito mais. Sempre foi teu sonho esvaziar por ima de mim as palavras da tua coleção de desaforos. Mas eu não te odeio.

- Tu também não me odeias. Se me odiasses, já terias ido embora, disse ela, como se fosse uma súplica.

Olhava para o horizonte como se quisesse fugir dos meus olhos. Começou a brincar com o isqueiro em cima da mesa, depois mexeu nos cabelos, descruzou as pernas. Cantarolava uma canção do Heart.

- Ah tão linda esta música, tivera eu asas, voava às alturas da melodia, tu não achas? A música sublimando as chagas e as nódoas na alma, pudesse eu ser leve...

Uma loucura trágica que se estendeu a um pranto estreito, cheio de humildade. Entre soluços, dizia coisas estranhas:

- És um covarde, porque não lutas por mim, a melhor coisa que apareceu na tua vida, eu te amo desesperadamente, se te traí, foi para acordar teu zelo, mas tu permanece indiferente...reage, diz que me ama...!

Eu de repente me senti responsável por aquele trágico jorro de sentimentalismo, por ter feito graça à infantilidade dela, que sempre gostou de ser bajulada com a palavra amor, nunca se cansou das rimas pobres que tal palavra remete, nem dos enxames de incongruência ocasionada por esta aborrecível falácia. Por um momento senti pena daquele contra-senso feminil. Levei minha cadeira perto dela e lhe beijei o rosto numa clemência calma e ela violentamente encostou seus lábios nos meus num abandono extremo, apaixonadamente. Meus lábios que há uns minutos atrás ela disse ter nojo. Infeliz mulher, que queda vertiginosa, que salto no escuro. Antes de terminar a peça, eu lhe disse, para amenizar as coisas:

- Assumo a culpa! Agora é tarde para tristeza e arrependimentos. No fundo sei que a culpa foi minha, apesar da traição ter sido tua. Eu acho que nasci para ser sozinho, mesmo. Tua traição foi um efeito natural. Acontece. Antes de deixá-la falar qualquer coisa, fui até o balcão de atendimento, pedi mais uma garrafa de vinho e paguei a conta. Voltei à mesa, dei um dinheiro para o táxi dela.

- Eu vou ficar por aqui, bebendo mais um pouco. Enquanto isso tu vais ao meu apartamento e pega o que for teu. Deixa a tua chave com o porteiro.

- Então acabou? Ela perguntou - com resquícios de lágrimas nos olhos. Apesar da dor, estava bonita. Já não havia peso para carregar. Ela era o alívio com olor de vazio. Tão bonita como na primeira vez que a vi, noutro tempo. Mas tinha acabado. Ela saiu e se despediu apenas com um olhar. Voltaria para a casa de sua mãe, que sempre me odiou. Foi até a esquina onde havia um ponto de táxi. Partiu sem maiores sinais.

- Sim, acabou, respondi sozinho, quando ela já havia ido embora. Mais uma tentativa frustrada. Sem grand finale.












quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

A canção de amor do jovem Almafuerte

Não imploro amor
Não mais, nunca mais!
Cinco quedas-livres são suficientes
Para recuperar a aspereza.

Um e-mail às cinco da manhã
Diz que tudo foi derrogado
De uma forma tão cálida
Que o riso suspende a lágrima.

Angioplastia sem anestesia
Ao fim de cinco doses de felonia
Já não sinto dor.

A carótida é uma rosa espedaçada;
Há um projétil cravado na coluna vertebral
Mas não sinto dor
      ‘Stou áspero & duro
      Como esmeril.

Encho o rosto de cicatrizes
Com um prego enferrujado;
Ser belo qual um cavalo morto!
Atrativo como cem caveiras brancas
Num mausoléu...

Tudo derrogado
Sou a solidão nos cafés
A borrasca das tardes pelotenses
Sem máscara sem mágoa
Um leve desconforto
De arame enfarpado na uretra
E uma xícara árida de deserto.

Cinco tentativas vãs de suicídio
Cinco tenebrosos intentos de amor
São mais que suficientes
Para cinco vidas.

Cinco da manhã
Eu amanheço
Enfim.
Não imploro amor

Não mais, nunca mais.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Canção do amor oblíquo

A rua replena de gente
Todas com aspecto de estorvo
Trombando entre si
Atropeleiro, boiada solta,
Possuída
Pelo demônio de possuir

Natalíptico vespeiro
Animosidade nos olhares
Embrutecimento
Truculência nos gestos
Semelhavam fugir do Vesúvio

De repente percebi:
Havia perdido um dos meus sapatos
Ao procurá-lo
Fui derrubado
Pisotearam meu corpo magro e arcaico
Meu rosto, meu púbis, minhas pernas
A dor me fez apagar

Quando acordei, noutro tempo, era deserto
O sol batia nas minhas sobras
Eu era deserto
Sem rosto, sem dentes, sem serventia.

O que sobrou de mim, atirei à tua janela
Quebrou teu vidro
E o meu coração.

Quase

mudar de bairro
cidade
estado
país
continente
                       … Mudar…

o modo de vestir
a escassez  
                  do sorriso
a forma de olhar
trocar de rosto
a casta do desgosto

mudar
esta mudez
esta nudez de palavras
frases feitas engastadas
na complacência
                         da espera

mudar de vez
sem quando
ou jamais
ser mais

que a sombra envergonhada
que se descobriu nada
quase
tarde demais

mudar de bairro
cidade
estado
país
continente

ou ser puramente
o que sempre fui

sem ter sido 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Aniversário

Entristecia-me ao perceber
Que o dia do meu aniversário estava terminando...

Por um dia fui especial!
Por um dia ganhei abraços!
Foram expressões afáveis
Por um dia!

Por um dia tive o constrangimento contente
De cantarem parabéns para mim
Por um dia fiquei tímido e lisonjeado
Pois tudo era em minha homenagem
Os olhares que sorriam...
O bolo colorido...

No outro dia
A vida voltava ao normal
Tornava-me cotidiano
Tão cotidiano
Quase invisível
Recebendo o cumprimento frouxo
O olhar murcho
Bom dia enferrujado
E sem força.

E precisava esperar mais um ano
Para me tornar digno de receber sorrisos
E cumprimentos afetuosos
Um ano para me tornar
Especial...

Ah, seria ótimo, pensava,
Fazer aniversário todos os dias
Mesmo que somassem números à idade
Números são nada
Mas a alegria de estar de aniversário
É imensurável!

Imensurável?
Do tamanho de sonhar, digamos...
Imensurável?
Digamos que seja agradável jogar
Imensurável
Quiçá, um afago social.

De repente, a criança cresce
E se dá conta que é pequena
E não significa nada
Somos números nos nossos documentos
Números são tudo.

Mais certo, afinal
É não fazer aniversário!

Que esqueçam a data que nasci
Esqueçam minha idade
Sem mais expectativas infantis
De esperar um ano
Para ser especial
Por que - afinal
Não sou especial!

domingo, 15 de dezembro de 2013

Um, Dois, Três...

É apenas um conto ou um exercício neste gênero. Ficção. O fato de um dos personagens ter meu nome é mera coincidência. Nada mais.



Sentado num dos bancos da praça, num momento em que é permitido pensar. Intervalo do trabalho, depois do almoço; coisas aconteciam em mim.
Em outro banco, a minha frente, uma moça sentada, com olhar distante, perdida em pensamentos, também. Uns vinte e poucos anos. Vestia-se discreta, sem roupas em voga, usava uma sandália aberta, que dava para ver que tinha pés bonitos e bem cuidados. Os olhos expressivos, que transpareciam inteligência e qualquer acento melancólico, que provocava charme singular. Um rosto bonito, mas sem gritar beleza. Era preciso olhar atentamente para entender que era bonita. Aquele tipo de rosto que quanto mais se olha, mais se percebe nuanças que encantam, mas podem passar despercebidas para os menos atentos. Pernas cruzadas. Segurava um livro fechado.
Levantei e pedi com delicadeza para sentar ao seu lado. A garota fez um silêncio que era surpresa e susto. Disse sim, tremulamente.  Falei para ela:
- Sabias que até hoje não fui amado. Não falo por autocomiseração. Falo por dizer – Ela me olhou com desconforto. Já parecia bem desconfortável com minha presença ao seu lado. O espanto só aumentou. Foi se afastando lentamente para beira do banco de cimento, a fim de manter distância. Talvez ela pensasse em sair correndo, ou chamar algum guarda. Eu insisti:
- Verdade. Nunca fui amado, no entanto amei bastante, até sentir o coração igual um trapo inútil, pisoteado, defecado por cães. Ela respondeu:
- Moço, não estou entendendo nada. Há algo surreal aqui. Deve ser uma espécie de sonho maluco. Tu não existes. Mas se existes, o que tenho a ver com isso de ninguém te amar?
-É simples – respondi – Não fui amado. Até agora fui um desses isopores que vem em caixas de produtos eletrônicos para preservá-los. Depois de sair da caixa não valem nada. Ninguém sabe o que fazer com eles. Bem, gostaria de saber teu nome...
Ela hesitou como se estivesse escolhendo a melhor forma de se livrar daquela conversa. Por fim, disse:
            - Clarice.
            - Engraçado –respondi - o mesmo nome da autora cujo livro tu estás segurando.
            - Sim, coincidência – disse Clarice (agora já sabia o nome dela ou seu nickname. Pelo menos podia me dirigir a ela através de um nome) – Mas, olha, moço, eu já vou indo. Tenho que trabalhar, meu horário de intervalo tá acabando...
            -Clarice, peço desculpas se te assustei com meu jeito imprevisto, com minha abordagem fora dos padrões. Fica mais um pouquinho. Por acaso tu já amou? Já foste amada?
            - Ah, que pergunta!  – retrucou ela – Será que tu não és um maníaco ou coisa parecida?
            - Te asseguro que não – respondi. Se fosse, eu seria muito mais convencional. Os maníacos que andam aí sabem perfeitamente, mais que ninguém, assumir normalidades. Vai um conselho: nunca acredita numa pessoa excessivamente normal e de atitudes e palavras retilíneas. Claro, se eu fosse um maníaco ou algo similar, não iria te dizer. Existem maníacos, também, excêntricos que nunca foram amados e relatam isso para uma estranha. Então, acho que tua dúvida permanece, não é? 
Meu quase-humor, minha semi-piada fez com que Clarice saísse um pouco da defensiva.
            - Então, Clarice, o que achas da situação: nunca fui amado. Sou um pêssego que fica num prato, esquecido e perece, sozinho. As pessoas olham com certo nojo, mas esquecem ou têm pena de pôr fora...
            - Ah, Deus, como és insistente, moço. Eu não imagino por que não foste amado. Sei lá. E a tua mãe, não te amou?
            - Mãe não vale!  Visto que me refiro ao amor homem-mulher. Aquele que desde que o mundo é mundo, é tão falado e rimado em poemas, sonetos e canções. Antes de Petrarca, Catulo. Já leu Safo?
            - Não conheço Safo nem Catulo. E, sinceramente, não sei por que não foste amado! Nem te conheço, para começo de conversa!
            - Meu nome é Leonardo. Agora já sabes meu nome. É um começo. Então, por que será?
- Sinceramente não sei. Há Pessoas sozinhas, como Eleanor Rigby, daquela canção dos Beatles. Muitas são excêntricas demais ou cheiram mal ou simplesmente não nasceram para esse tipo de amor que tu falas.
            -Será que eu cheiro mal? Ela sorriu. Consegui um primeiro sorriso de Clarice, minha nobre desconhecida! Ela disse:
            - Não, tu és até bem perfumado! Mas sinto que fumas. Diminui um pouco tua qualidade de rapaz cheiroso.
            - É, Clarice, acho que não nasci para o amor...
            - Ou és excêntrico demais. Tua abordagem me assustou. Pensei que fosse um maníaco. Ainda tenho cá minhas dúvidas... Do nada tu vens com esse papo de amor, não ser amado. Algo que fica entre a imaturidade e a loucura.
Eu me fechei um pouco. Alguns segundos. Mas continuei, segurei o desconforto e segui conversando:
            - Clarice, tu és a primeira pessoa com a qual falo estas coisas. Tenho amigos e amigas e nunca me aprofundei em revelar essa ferida que tenho. Quando perguntam sobre minha vida afetiva, digo: “vai indo”. Mas olhei nos teus olhos. Tu, teu livro da Clarice Lispector, esperando não sei o quê.  Senti que eras a pessoa ideal para confessar essa dor. E não creio que seja infantil ou maluco. É um de nossos temas mais importantes. Nossa vida gira ao redor de trabalho, realizações pessoais e, entre elas, está o amor como ponto central. Os mais hedonistas, bem no fundo, esperam amar de verdade, um dia. A costureira viúva, de idade avançada também pensa no amor e sente o vácuo de ter um lado da cama vazio. Hoje parece que virou tabu falar de amor entre pessoas civilizadas, com um pouco de cultura. Fala-se em concurso, prosperar, comprar carro, casa... Mas voltando: achei que podias me ajudar...
            - Quer saber, Leonardo, também ando desacreditada no amor. Estou ficando com um cara. Ele é bem atraente e temos uma intimidade que atende as expectativas, mas falta algo. Deve ser o amor. Ou palavras. As palavras são escassas entre a gente. É preciso forçar a mente para engendrar um assunto. É artificial.  Definitivamente, não há amor!
            - Vocês têm um compromisso? Algo assim? Só curiosidade...
            - Para falar a verdade, não. De vez em quando ele me liga. E, sabe como é, estou sozinha. Damos uma volta e então engendramos o grotesco ritual. Mais ou menos como animais, porque não há uma ligação verdadeiramente carinhosa. Para mim, o mais importante não é o sexo em si, mas o carinho e, principalmente o afeto que vem depois. Um abraço prolongado e uma espécie de mágica que não acontece com ele. Depois, chego a me sentir culpada. Mas passam umas duas semanas e a carência me faz ceder. Agora estou determinada a acabar com isso.
            - Comigo acontece o mesmo. O Sexo fica burocrático sem um carinho maior. Não sei se é idealizar demais. Na verdade, sexo também é uma necessidade, assim, como as necessidades fisiológicas menos poéticas. Embora nunca tenha sido amado, já fiz sexo, óbvio. A última mulher com quem me envolvi era casada. Prometeu que se separaria para ficar comigo. Levei duas semanas para cair na real e descobrir que ela jamais faria isso. Ela era ótima na cama, mas não me amava. Eu era a aventura dela. Seu bicho de estimação. Eu saí a tempo de não me apaixonar. Fugi. Ela disse que eu era puto. Nossa, como chegamos nesse assunto?
            - Ah, não sei. Foi tu que começou, Leonardo. Mas tudo bem, acho que tens razão, é um assunto importante no qual gira boa parte dos nossos pensamentos. Amar, ser amada. O valor do sexo...
            - E tu já chegaste a amar de verdade, Clarice? Foste correspondida? 
            - Acho que umas duas vezes, para valer. Não sei se fui correspondida, mas aconteceu. Com o primeiro foram dois anos de namoro. Eu me doei toda na relação, mas ele era meio indiferente. Não sei se era o jeito dele de gostar...  Parecia Mersalt, sabe aquele livro do Camus, não lembro o nome. Nunca me negou nada, mas sempre dizia, “para mim tanto faz”. Foi fácil discutir a relação com ele e acabar. Ele simplesmente disse: “quer acabar? Para mim tanto faz...” Nunca esperaria nada diferente dele. A situação era séria, mas tive de rir. Claro, chorei dois dias, mas passou. Já o segundo, e último, antes desse cara que estou ficando, não aconteceu nada. O amor adormeceu nos campo da idealização. Ele era querido, mas bastante tímido e eu não sou muito de correr atrás. Homem tem que ter um mínimo de atitude. Claro, esbocei alguns recursos não verbais. Olhares, sorrisos, sempre fui simpática, um pouco mais do que o natural. Não deu certo. Hoje ele está na Inglaterra fazendo pós-graduação em não sei o quê. Não me interessa...
- E este livro? Gostas de Clarice Lispector? Eu gosto muito desse título...
- É leitura obrigatória. Estou estudando para fazer outro curso superior. Sou professora de Geografia, mas não estou feliz com a profissão. É desgastante. Eu era nova quando fiz vestibular. A maioria das pessoas são novas demais quando se veem obrigadas a escolher uma profissão. Tive uma professora no ensino médio que foi o máximo para mim. Acreditei que funcionaria comigo...
- Uma pena que não estejas contente com a profissão. Quanto ao livro, tenta ler com carinho, ela é especial, lírica, etérea. Faz com que nos aprofundemos na nossa subjetividade, seja por espelhamento ou por negação. Não pensa como leitura obrigatória. Alguns livros tem poder de acrescentar algo positivo ao nosso ser. Quando se termina bom livro, a gente não é a mesma pessoa que começou a ler.
- Tudo bem, ótimo discurso, Leonardo, mas um livro pode nos introjetar coisas negativas. Desestabiliza nosso mundo.  É tão difícil atingir certo equilíbrio emocional e vem um livro para desmoronar tudo. Pôr a gente em crise... Hoje em dia prefiro ler coisas amenas. Romances “água com açúcar”. Lembro que Kafka me adoeceu...
- Te entendo perfeitamente. Mas às vezes isso pode ser receio de encarar as grandes questões que movem a nossa existência. Ignorar certas coisas não resolve o problema. E o mundo não é nenhum mar de rosas. Muitas vezes parece que encontramos o equilíbrio, mas apenas estamos de olhos fechados. Há gente que dorme em papelões na rua. Há pessoas em pânico, que tem medo de ir ao supermercado. Há gente viciada em remédios para ansiedade, alcoólatras, adictos de substâncias mais fortes. A batalha espiritual ou psíquica é terrível, mas tem de ser enfrentada. Ignorar isso não nos faz melhores. Vivemos em crise, existenciais, profissionais. Tu não me disseste agora a pouco que queres mudar de profissão?  Este é o mundo. Não é belo, mas é o que temos. Aliás, o que pretendes estudar?
- Psicologia. É, sou meio contraditória, tenho que admitir. Com medo de adentrar no mundo denso da Clarice, mas quero fazer psicologia. Léo, acho que posso te chamar assim, né? Meu nome não é Clarice. É Débora. Clarice foi o primeiro nome que me ocorreu, olhei para a capa do livro... Desculpa.
- Capaz. Eu também ficaria na defensiva se estivesse em teu lugar.
- E tu, Léo, teu nome é Leonardo, mesmo?
- Sim, mas quem conversa contigo agora, encantado com teus olhos, é Nei Percival! Ela ficou assustada novamente, depois de uma conversa tão fluida. E foi logo dizendo:
-Poxa, agora me deixasse confusa. Explica isso! É esquizofrenia que tu tens?
-Bom, Débora, vou tentar explicar. Sempre tive uma personalidade virada para dentro. Sempre muito tímido, calado. Em contrapartida, minha mente um parque de diversões. Sempre em ebulição, buliçosa. Mas nunca consegui externalizar minha persona verdadeira, em sua totalidade. Sabe: medo, insegurança. Desisti de saber as origens desse mal que sempre me acometeu. Sempre fui anulado. No entanto pensamento e personalidade estavam ali, latejantes. Eu já vinha pensando nisso há dias. Não é nada original: depois de Homero, nada é original. Minto, Homero só compilou histórias que já existiam e criou seus monumentos literários. Mas voltando ao meu plano. Uma espécie de despersonalização: na verdade continuo sendo eu, mas sem o medo e a insegurança. Sempre lutei contra isso e fui vencido. Eu precisava mudar. Para minha sobrevivência. Mas para não se tornar algo assustador, criei o Nei Percival. Na verdade ainda tenho dúvidas quanto ao sobrenome: Parsifal talvez soe mais elegante. Resumindo. Sou eu, em essência, sentimentos, mas agindo como outro.
- Fiquei confusa. Agora a conversa parece mais maluca do que no início. Então estás fingindo desde o início?
- Não, jamais. Sem Percival eu teria me interessado por ti da mesma maneira e me imaginaria tentando conversar contigo, pedindo para sentar ao teu lado, começar uma boa conversa. Mas tudo ficaria no palco da imaginação, por que eu, Leonardo, sou tímido.  Mas Percival não é. Débora ficou pensativa por uns segundos. Depois disse:
- Isso me lembra daquele negócio de heterônimos do Fernando Pessoa. 
- É, não deixa de ser parecido. Bom, pensando bem, Fernando Pessoa, ele mesmo, era Álvaro de Campos; precisou da máscara para se desmascarar e escrever o que realmente sentia. É uma hipótese, apenas. Mas se aplica ao meu caso.        
- Léo, tu és singular. E desde quando começaste a usar esse tal de Percival?
- A partir do momento que me levantei do meu banco para vir falar contigo.
- Ah, então sou a primeira vítima do Percival? Mas por que foi exatamente nesta ocasião?
-Dois motivos: o primeiro foi uma longa conversa que tive com a morte, antes de tu chegares e sentar à minha frente. Primeiro lembrei que há dez anos, eu estava aqui sentado, no mesmo banco, no intervalo do trabalho. Então descobri que dez anos passaram como se fosse um dia. Menos, até; alguns minutos. O mesmo cara inseguro que sentou aqui dez anos atrás estava novamente sentado, segurando dentro de si um amalgama de pensamentos e tolhido na insegurança. Com muito a dizer, mas sem atitude...
- Mas Léo, e a morte...
- Pois é, a morte é isso. Deixar que o tempo passe enquanto nos acomodamos num banco de praça durante dez anos sendo a mesma pessoa. Não quero dizer que não goste de ser quem sou. Mas faltava um pedaço importante: um pouco de coragem, atitude... Pensar é bom, cogito ergo sum, mas pensamento sem ação é uma energia desperdiçada. Se não houver ação, não há por que pensar. Mas o nascimento do meu outro eu que é eu mesmo foi impulsionado por ti. Este foi o segundo motivo. Ele veio à tona quando te vi; sabe, muitas vezes perdemos a chance de dizer uma palavra a alguém que de repente pode ser importante para nossa vida. A gente sonha todas as noites, pede a não sei qual deus que ponha no nosso caminho pessoas especiais. Provavelmente encontramos pessoas especiais em todo lugar: no ônibus, no trabalho, no supermercado. Mas fica por isso mesmo, por que não tentamos nada, sequer um sorriso. Ou falar uma banalidade para iniciar um assunto. E realmente achei que seria perder uma grande oportunidade se te olhasse e te admirasse em silêncio. Senti algo especial na tua pessoa, no teu olhar. Provavelmente tu serias uma dessas pessoas especiais que a gente olha uma vez e não diz nada e elas simplesmente desaparecem.  Nei Percival surgiu impetuoso, pois como te disse, sou tímido. Perguntei para ele, “mas e aí, o que vamos dizer?” “A primeira coisa que vier na cabeça”, ele falou.   Foi assim. Em bem poucas palavras, foi o que aconteceu.
Débora ficou pensativa. Por fim disse:
            - E aí, valeu a pena a metamorfose? Gostou de me conhecer? Será que sou especial?  Porque se tu continuar usando essa tática, podes conquistar várias mulheres.
            - Eu consegui te conquistar, Débora?
            - Claro que não, bobalhão! Eu acho que quando me formar em psicologia vou te atender. Ela riu, para enfatizar que se que estava brincando.
            - Ahahaha, tu é gentil querida. Claro que gostei de te conhecer. Eu não sou espiritualizado em porcaria nenhuma. Mas creio que nada é por acaso; é uma coisa como instinto que me que diz isso. E o fato de teres conversado comigo, prova que és especial. Eu cheguei da pior forma possível. Eu ou Percival sei lá. Também estou confuso. Poderia ter começado falando das flores que nascem nestas árvores, a esta época do ano e que elas ficam bonitas quando caem no chão, formando um tapete. Teria sido mais sutil.
            - Verdade. Mas te confesso que fui ficando. Poderia ter ido embora. Acontece que tua conversa inusitada me despertou, apesar do espanto inicial. Não aprecio clichês. Apesar de parecer louco, tu não és um rapaz lugar comum. Tens algo diferente que eu gostaria de descobrir. Mas não pensa que me conquistaste. Bom, agora tenho que voltar para o trabalho. Muita aula pela frente, alunos indisciplinados... Prazer em te conhecer, Léo.
            - O prazer foi meu, Débora. Por acaso não queres tomar um café comigo depois do teu expediente? Que horas tu te liberas?
            - Café... Contigo... Não sei não... Meu expediente acaba às 19. Mas ainda acho que és maluco.
            - Vamos, Débora! A conversa está tão legal, seria ótimo continuarmos...
            - Tá bom, vamos. No Expresso, pode ser? 19:15...
            - Combinado!
            - Só nós três, hein!
            - Como assim, Débora? Vais convidar mais alguém?
            - Eu, tu e o teu heterônimo: Perseu, Percival, Parsifal, sei lá.
Eu sorri. Dei-lhe um beijo no rosto. Ela foi embora e eu acompanhei seu passo lento e sinuoso; eu estava em transe. Finalmente era um dia feliz. 

sábado, 14 de dezembro de 2013

Depois de dez anos, respondo tua carta...


Não, querida, não creio que seja loucura. Como creio, também, que não é loucura te responder somente 10 anos depois. “O eu é outro”, já dizia Rimbaud. Que essa citação sirva de mote para o começo dessa conversa.

 

De lá para cá, a configuração da minha vida mudou bastante. 10 anos tem um peso imensurável em nossas vidas, sob muitos aspectos. Mas te digo que continuo perdido. Há muita névoa e uma mitologia obscura, obra do medo, da insegurança que ainda me assalta. E muitas vozes. Provavelmente eu esteja mais perdido do que antes.

 

Eu? Quem eu sou, afinal? Se não descobrir a tempo, pratico a autofagia.

 

Lembro que tua carta era para Almafuerte. Mas o Léo também tomou a liberdade de ler. Na época eu era mais Léo que tudo nessa vida. Léo se sobrepôs ao Almafuerte e seguiu sua vida de excessos, buscando a embriaguês e a luxúria que tanto almejava. Talvez não tenha dado crédito às linhas que me escreveste, na melhor intenção: a cura.

 

Mas Léo acabava sempre sozinho, apagado numa parada de ônibus, caído em algum banheiro sujo, todo manchado de vinho e vômito. Nunca conseguiu a vida luxuriosa porque, na maioria das vezes, era um bêbado asqueroso.

 

Houve uns 2 anos de intervalo:  Almafuerte amou e perdeu a personalidade por inexperiência no amor. Guarda boas lembranças. O tentame o ajudou a crescer, ou a ser menos ingênuo. Mas acabou. Acabou porque tudo na vida é provisório.

 

Léo voltou! Fez louvores: foi expulso de bares, usou liambas, mijou em uma igrejas e continuou órfão da luxúria. Chorou. Enganava-se com uma sexualidade solitária.

 

Esporadicamente Almafuerte voltava. Apaixonando-se fácil, igual donzela fictícia de livro para moçoilas; amargando amores não correspondidos. Almafuerte sempre foi o autor: é dele a sensibilidade para a poesia, à música. E é ele que lê e se deleita com bons autores e boa música. No entanto, não sabe esconder que é vulnerável demais.

 

Há duas notícias:

 

Léo está morrendo! Parou de beber, de sair. Tornou-se uma freira. O que sobrou dele é a virilidade agreste, mas contida, oprimida, escondida, como moléstia vergonhosa.

 

Almafuerte, este está cada vez mais escasso. Só escreve por extrema dor ou quando se sente vazio, igual uma sacola nojenta de supermercado, voando ao gosto do vento.  Tudo por que há um terceiro: Almada!

 

Almada dorme, esse é seu talento. Um homem sem biografia. Funcionário público. Sempre cansado; é magro, de fundilhos caídos e fuma 2 maços de cigarro por dia. E não se entusiasma com nada. Titubeia sempre, não fala. Tem preguiça de pensar. Olha inerte para a tela do computador. Lê bulas de remédios com volúpias de aumentar o seu tédio.

 

Léo vive numa penumbra. De vez em quando sonha em morar num lupanar, sonha com mulheres carnudas, vulvas aromáticas. Sente-se culpado por tais sonhos e volta para a Solombra.

 

Após intervalos, cada vez mais alongados, Almafuerte abrolha. Escreve, tem planos mil. Produz deitado, bebendo chá de alcachofra.  Mas Almada toma dois Rivotril e adormece Almafuerte.

 

Eu (ou nós?) sempre te invejei (invejamos), querida. Uma inveja boa, se é que é possível um sentimento tão contraditório. Pois a inveja é um anseio malfazejo. Admirei-te (fica melhor assim). Viveste teu período de hedonismo quando tinhas que viver, foste sensível quando tinhas de ser. Foste amada por muitos. Partiste corações.  Era a vingança concretizada.  Ainda há uma legião de apaixonados por ti. Os 10 anos te engrandeceram. Claro, não sei como estás por dentro. Espero que bem, sem muitas inquietações.

 

Mas voltando as minhas personas: Almada comanda e ninguém ama Alamada. É insípido, inodoro, sem cor. Tem a voz que como se fosse um pingo discreto caindo da pia.

 

Minha esperança é Almafuerte. Mas não sei se ele consegue sozinho. Sente falta do Léo. Apesar de todos os defeitos, Léo possuía o olhar de leão, gritava com o violão em punho, como metralhadora, sangrando as cordas vocais. Léo, que quando não estava em quase coma alcoólico, era expressivo, simpático e bem-humorado. Parecia ter uma personalidade forte. Mas hoje Léo é um epitáfio.

 

Tua carta terminava com os dizeres: paz e harmonia.

 

Ainda não consegui ( ou conseguimos) paz e harmonia. Hoje, sim, preciso da tua ajuda. Mais do que 10 anos atrás, tempo em que eu estava absorto em ser Léo.

 

Acho que é Almafuerte que escreve esta carta. Ele quer chorar no teu ombro. Se sente um desgraçado, embora seja abençoado em muitos aspectos. E pede desculpas pela pequena demora em responder.

 

Post Scriptum: Nós éramos incipientes demais para conhecer e adotar William Blake e Herman Hesse. Mas não sei se faria diferença.

 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Poemas da Infância

Estes poemas símplices estavam guardados em uma das pastas onde coloco todos meus rascunhos que não pretendo publicar no blog ou qualquer outro meio (sim, eu ainda escrevo, fisicamente falando - com caneta & papel). Duas folhas com uma caligrafia horrível, escritas, às vésperas do sono de um dia ignorado. Sei que foram escritos nesse ano.  Entretanto, depois de reler, dei por acreditar que eles possuem algum valor. À época os engendrei na ingênua tentativa de autoconhecimento. Não era minha principal preocupação o “estético” muito menos emular Manoel de Barros. Apenas reminiscências. Algumas não tão boas, mas que formaram meu caráter ou perpetraram as lacunas na minha personalidade.
Deixo claro que não é guardo sentimentos ruins com relação aos meus pais. Principalmente meu pai, um personagem que aparece, nem sempre pintado com tintas muito favoráveis. Se for para perdoar, já perdoei. Na verdade, sou grato por muita coisa. Pais muitas vezes não sabem como lidar com essa extrema complexidade que é ter um filho e acabam cometendo erros. Também sou pai e faço o possível para não cometer erros; mas como o possível nem sempre é suficiente, fica aquela sensação de que podia ter feito melhor. Também não foram escritos com o pernicioso sentimento de autocomiseração. Apenas autoconhecimento, como já havia me referido.
Publicá-los também  é a garantia de mantê-los. Quanta coisa joguei fora e hoje me arrependo! Não eram boas mas faziam parte da minha história. Uma história quase sem enredo, mas uma história. Mereciam uma boa revisão. Mas a preguiça não permitiu. Paciência. Pode ser que o valor esteja na rusticidade com que foram concebidos.
“Publicar” é um verbo forte quando nos referimos a post de blogs. A abrangência é bem limitada. Por isso não me sinto desconfortável em desnudar esses 1% da minha infância/ minha alma. Metade das visitas são minhas mesmo, visualizando como ficaram os textos. Se o espaçamento, a fonte ficou legal.  Claro, tenho leitores & leitoras fiéis. Sou grato. Valem por muitos.
A introdução ficou longa, peço desculpas. Pego a viola e entoo as canções, duma vez:


******************
Minha mãe escrevia poemas
Um dia conheceu um rapaz bonito que tinha uma moto
Emprestou o caderno com seus poemas para ele
E o rapaz perdeu a poesia da minha mãe

Pouco tempo depois eles casaram
Eu nasci
E minha mãe não escreveu mais
Nenhum poema.


******************
Era 1981 e a segunda guerra já havia acabado
No entanto o Spitifire
Famoso caça britânico
Era objeto de desavença

De um lado um pai que não queria ser pai
Do outro um menino de três anos de idade que queria brincar
Voar no aviãozinho

Já o pai queria que ele ficasse como enfeite
Na parede

A criança chorou porque o avião não podia sair dali
O choro foi intenso e incomodou o pai que não queria ser pai
A mãe tentava apaziguar a contenda
Distrair seu filho com outros objetos de menor valor
Mas o menino insistia
Queria voar no Spitfire
E continuava a chorar...

E, numa atitude descontrolada, o pai
Quebrou o caça britânico em mil pedaços

E assim acabou a guerra.


******************
Com quatro anos não se sabe o que é namorar
Mas eu acreditava que namorava Cláudia
Não lembro se cheguei a dizer isso para ela
Não faria muita diferença

Era uma tarde nublada e fria
Caia uma névoa tristonha
Nós conversávamos na frente de casa
E ela disse que ia sair um pouco para ver
A TV nova que seu pai comprou
Que eu a esperasse

E eu esperei na rua
Uma hora, duas horas...
Quando já anoitecia
Minha mãe me chamou para casa

Eu estava com febre
Tive convulsão
Chamaram médico
Cláudia não apareceu


******************
Acho que ele estava na sexta cerveja
E diz para mim que não queria ter casado com minha mãe
E que ela deixou que eu fosse concebido para prendê-lo
(pois o enganara sobre o anticoncepcional)
Que a vida dele teria sido melhor

Eu perguntei: “então tu gostaria que eu não tivesse nascido?”
Ele ficou meio atônito, pensativo,
E finalmente disse:
“Provavelmente tua alma iria brotar em outra criança de outra família
Assim como a alma do teu irmão”

Achou uma escapatória no lirismo ébrio

Até hoje me lembro dessa conversa
E sua resposta até hoje não me convenceu
(meu pai nunca acreditou em alma)


****************
Eu tinha uns esquilos de plástico
Meus brinquedos favoritos
Foram tão importantes que
Eles se personificavam em amigos

Se tornavam do tamanho de crianças
E eu brincava com eles
Todos tinham nomes
Que lhes atribuí

Meus pais achavam graça
E ao mesmo tempo estranho

Estranho por que eles não tiveram uma infância
Tão sozinha
Que era preciso inventar...
Improvisar amigos


******************

Lembro-me de poucos aniversários
Da primeira infância
Um dos que lembro
Foi na casa grande do avô

Ganhei um peixe amarelo do tio Lu
Uma bola do Inter, não me lembro de quem

Minhas tias, que na época não eram velhas
Minha mãe novinha
Com cabelo horrível
Moda anos 80

Havia bolo, como em todo aniversário
E crianças chorando
E balões

Uma das fotos que tenho
Eu fardado de jogador de futebol
Com a bola do Inter

Até hoje não gosto de futebol.


********************
Os fins de semana do meu pai eram sagrados
Ele tomava vinho no almoço e dormia toda a tarde do sábado
E era sagrado não fazer o mínimo barulho
Ah, se ele se acordasse, a casa desmoronava!

Eu lembro que queria entrar no meu quarto
Para pegar meus brinquedos
Mas não tinha coragem
Estava com medo de acordá-lo

Então fiquei chorando na rua
Saudoso dos meus brinquedos

Minha mãe contou a história para ele depois
Sobre meu choro e o medo de acordá-lo
Ele se sentiu culpado, criou-se uma discussão
Mas depois de todo drama,
Foi estabelecido em juízo
Que eu era o culpado, exagerado
E medroso.


********************
Às vezes meu pai era legal
Chegava em casa
cansado do serviço
E mesmo assim brincava um pouco comigo
Com carrinhos
Jogava dama...

As coisas boas ficam, também
E meu pai, muitas vezes
Conseguia ser pai.


*********************
Certa vez minha bolinha de tênis
Caiu em um buraco fundo
Coloquei o braço dentro
Para pegá-la
E acabei pegando um sapo na mão
Ele era úmido e gelado...

Minha prima disse que xxi de sapo deixa cego
E eu fiquei esperando a cegueira chegar
Deus, não poderia mais ver desenhos!

Mas o sapo, coitadinho, não deixa ninguém cego
Ficou assustado, com aquela mão invadindo sua casa
E não dormiu à noite.


**********************
Hoje meu pai tem 62 anos
Eu, 34
Em 34 anos nunca o chamei de pai

Não sei por que...
Talvez por que ele nunca fez questão
(No geral as crianças aprendem o que os pais ensinam)

Lembro-me de minha avó e bisavó
Dizerem que era erro chamá-lo de Paulo
Era pai

Mas depois todo mundo se acostumou
Principalmente eu

Hoje seria  algo bastante constrangedor
Chamá-lo Pai



*********************
Um dia meu avô chegou a nossa casa
Trazia um saco que dizia ser um presente para mim
Fiquei super feliz

Quando abri o saco eram apenas tocos de madeira!
Cada qual de um tamanho diferente.

Eu ia dizer que eram apenas pedaços de madeira

Mas meu avô disse:
“Tá vendo:  esse é o caminhão, esse é o carro, 
Este outro é uma casa”

E realmente ele estava certo
Meu avô me ensinou a ver o potencial das coisas, de objetos
Aparentemente abjetos.

**********************
Era um dia cinza
Minha mãe grávida do meu irmão
Íamos comprar doce
E no caminho do mercado encontramos uma carteira
Quando fiz um gesto para pegar

Foi como se desmoronasse o mundo
Uma explosão no céu, temporal inesperado
Minha mãe caiu

Assustados, voltamos correndo para casa
A carteira ficou lá... Nem nos lembramos de pegar

No fim, minha mãe disse que eu a derrubei
Pois me desequilibrei e a levei junto ao chão
Até hoje não lembro direito

Sei que o tombo fez com que meu irmão ficasse
Sentado na barriga dela
No dia do parto ela e meu irmão quase morreram
Foi quando descobri o que era a culpa.


*************************
Não havia rádio na casa grande do meu avô
(Embora meu pai conte que o vô
Adorava música e em tempos antigos investia em toca-discos e long-plays )

Lembro que o primeiro rádio
Fomos na Hermes Macedo comprar

Era um rádio Am bonito
Minha mãe ouvia horóscopo
E as canções da época

E a primeira vez que me interessei por música
Foi através do tal rádio
Com Michael Jackson
Isso já em 1983
E morávamos em outra casa

Muito tempo depois destruí o rádio
Fixei fios nos contatos das pilhas e liguei na tomada
Tomei um grande susto, houve uma explosão.
Ficou inutilizável
Foi pro lixo.


*************************
Mãe lia gibis para mim
E dizia que a lua era de queijo

Eu ficava bravo
Porque ela começava a rir das histórias
E eu não entendia...
“mãe pára de rir e me conta!”

Minha mãe sempre foi boa
De um jeito simples
Mas essencial

Até hoje ela é boa
E até hoje fico bravo com ela
Embora continue a amando
Como nos tempos que lia gibis para mim.


*********************
Meu irmão nasceu em 1986
O Parto foi difícil
Ele estava do avesso e com cordão umbilical
Enrolado no pescoço

Mas nasceu saudável
No dia seguinte fui com meu pai e meu avô no hospital
Visitar mãe e  mano
Eu não podia entrar para visitá-los, pois não era permitida
Entrada de crianças
Mas abriram uma exceção.

Minha mãe, apesar do cansaço e sofrimento
Estava bem.
(Eu esperava que ela fosse ficar um pouco mais feliz em me ver)
O mano ao lado dela num berço de ferro.

Meu vô perguntou o que eu tinha achado do mano:
Eu disse:
“Ele é negrinho, né!”

(por causa do quase enforcamento no ventre
Ele nasceu bem escurinho)

Passaram os dias
Ele e minha mãe já em casa
Meu irmão foi ficando loiro e claro.
Na época não entendi
Era mágica?

********************
Mãe saiu para as compras
“Cuida teu irmão que já volto”
Eu sentado no chão com gibis
E ele no berço, já ficava de pé.

Havia um monte de brinquedos no berço
Mas ele estava interessado nos meus gibis

De repente um estrondo
Caiu no chão
Mais de um metro e meio de altura
Era bastante para uma criança de menos de um ano
Veio uma vizinha, pois comecei a chorar junto com mano

Minha mãe chegou e tava toda aquela confusão
Mas meu irmão não chegou a se machucar
E mais uma vez, a culpa...

Não cuidei direito dele
Fui perdoado depois de uma reprimenda
Eu tinha sete anos
Nunca me perdoei.


terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Rascunhos do Caderno B

I
Se houvesse um jeito prático de apagar a cara de parvo no espelho. Queimar as cartas e confissões que escaparam das mãos & lábios. Infelizmente elas chegaram aos seus destinatários. Está feito. A alma foi desnudada. Há dez anos eu já era velho o suficiente para aprender certas coisas. Continuo o parvo no espelho.

II
Acendo um cigarro com culpa. Apago o cigarro no cinzeiro enferrujado com mais culpa ainda. Tenho culpa do que fiz e do que não fiz. Ainda não nasci. Por enquanto sou um sorriso amarrotado e complacente. A culpa extrema de ter vivido sem nascer.

III
Escolho a maçã menos podre que adormecia sua carne já amarelada no prato. Minha amiga disse que levo à sério demais a vida. Concordo sem pensar, com os olhos parados. Duas lesmas inexpressivas. Cogito dizer minha dor, febre e demônios. Ela não entenderia. Eu digo que estou com sono, apenas.

IV
Espero feito babaca a ligação que não chega, o E-mail que não vem. Nem a modernidade me conecta. De repente não me sinto gente. Olho no espelho, novamente: sou o grande Gregor-Barata com maçãs cravadas no corpo!

V
Tu não precisa ficar constrangida por não ter assunto comigo. Isso acontece sempre. Já acostumei. Escreve à vontade tuas mensagens no Smartphone. Eu não tenho gosto nem cheiro para o mundo contemporâneo. Quando tu menos esperar, eu já terei desaparecido no ar.

VI
Acordei chapado, tropeçando nos móveis. Buick Makane é o despertador febril dizendo que o devaneio recomeçou. Recomeçou o quê? Preciso de mais tempo para descobrir. Ainda por causa dos remédios de dormir, é lento reaprender a respirar e agir. Perco um pouco de mim no banho: cabelos, células mortas. Faço um café, engulo amargamente - não acordo. Faz dias que não acordo nem entro em acordo comigo mesmo.

VII
Ouço Bruce Springsteen com fones de ouvido dentro do ônibus rangendo metais Aumento o volume, pois o ônibus parece que vai se partir em pedaços. Olho para as caras inexpressivas. Todos também estão cansados da rotina; o azedume é unânime. Alguns fingem melhor. Só.

VIII
Saio para a zona central. Sempre a ideia idiota de que um passeio desses alivia a alma, mente e o caralho. Estou louco para consumir e tapar lacunas.  Nenhuma oferta; e é o sol que me consome. Ar abafado e meninas lindas palrando com gosma de lesma nos lábios.

IX
Almoço sem graça, sozinho. Envergonhado num canto. Nenhuma palavra. Sou surdo-mudo. Palavras geram desconforto e dor. Escondo choro no saleiro. Engulo a tristeza co'a comida morta-processada que prende no esôfago. Tudo burocraticamente inócuo. Inclusive comer.

X
Se faltasse luz todos iríamos embora. A luz realmente cai. Há um despontamento postiço. A eletricidade volta em seguida. As máquinas funcionam que é uma maravilha. Todos corrigem alegrias. Mais um dia igual. Eu é que não funciono como deveria. Fico louco a prestação...

XI
A ideia flácida de mostrar sentidos, sentimentos, pontos de vista. Ninguém liga. Há gente demais sem perna, sem braço, sem casa. Por que alguém se importaria com sentimentos e vazio de existir? Se eu me matasse, talvez me levassem a sério. Percebessem que estou aleijado por dentro. Mas não valeria à pena. Escrever é a forma mais saudável de morrer.

XII
Eu bebia religiosamente. Aguardente e outros substitutivos. Hoje estou sóbrio. Oito meses vendo tudo sem a mente anuviada. Sem a alegria furta-cor que me ajudou sempre a escrever canções. Já não morro de cirrose aos 49. Num pequeno gesto, mudei meu destino. Morro, agora, aos 35, de desânimo.

XIII

Clara chega de amarelo-alegria. Bela e sensível. Fala coisas bonitas e eu acordo um pouco. Clara tem um jardim. Pessoas felizes geralmente tem um jardim para cuidar. Acho que um dos segredos da vida é ter um jardim. Enquanto não tenho meu jardim, tomo fármacos que me fazem adormecer. O melhor que tenho feito é dormir. 

sábado, 7 de dezembro de 2013

Poema sobre um poema...

À mesa tosca de trabalho
Um toco de lápis
Um papel amassado
À espera do poema
O poema que não vem

Rabisco meu nome
Espero a musa
Traidora
Tão palpável
Que inexiste

Deito decepcionado
Fecho os olhos
E
Finalmente
Ele vem completo
O poema!

Mas não consigo levantar
Papel e lápis no outro lado da casa
A cama me abraça
Adormeço
Ao som dos versos incorpóreos

No outro dia
Acordo prosaico
Estrofes comidas pelo esquecimento

Mais um poema perdido.

domingo, 24 de novembro de 2013

Porto

Um dos Cinco Poemas Lusos - parte de  um livro que ainda não existe.



O fado, o abismo
Consumiu  voraz
As caravelas ébrias
Do meu pensar

Em vão, aventura
Diuturna, muda
Em vão quisera provar
A esfericidade da terra

Vários outonos
Sem fruto sem gosto
Primaveras sem viço
Num porto de sal

Monstros marinhos
Perigo mitológico
Na lógica faina
De navegar

Inútil o desenho
Da real cartografia
Para o contorno da áfrica
Atlântico padecer
Sem índico remate

Aquém da riqueza oriental
Barão martirizado
Roto esquecido
No périplo de seus dias
Iguais
Iguaria de Cronos

Ah, qual deus entre tantos
No regimento dos Sete Céus
Vedou o albor de um horizonte
E transtornou o mundo
em um plano pedaço
de areia & mar.

Um rude disco
Com abismos
Em todos sentidos
(mesmo que já não faça sentido
O mito)

Ah, qual deus entre tantos
No regimento dos Sete Céus
Transformou em viver
O verbo navegar.