quinta-feira, 27 de março de 2014

Novo Blog

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terça-feira, 4 de março de 2014

Pouso

         Para Vanessa Regina

Há tanto mar nas tuas lágrimas
Tanto amor nos teus olhos de cristal lúcido
Tanto amor na seiva dos meus braços
E dor na breve necessidade da ausência

Mas há também um porto
Um pouso, um farol
Uma vida à parte 
Para descansarmos

Há tanta profundidade nas tuas noites
Tanto questionar-se, tanto frêmito
E há um medo no meu peito frágil
Inquietação, receio indefinido. 

Mas há, acima de tudo
O amor, uma resposta
Que se desenha no teto 
Na simpleza do gesto
Imensurável

Enfim, o definitivo encontro
A paz afinal
Sinalizando renovados dias
Revoada de versos.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Fuga

Para Emily



Eu estava com a barba postiça
De Dostoievski
E segurava a antiga bolsa
Que herdei do meu pai

Ela chegou logo em seguida
Um chapéu excêntrico
E vestes Belle epóque

Não estávamos tão discretos
O quanto gostaríamos
Mas não fazia diferença...
Realmente éramos diferentes
Dos demais passantes.

Pronta para a fuga, Baby?
Trazia uma mala que mal conseguia carregar
Fui ajudá-la

Cuidando estranho o peso,
Tomei a liberdade de espiar...
Livros, manuscritos e cadernos...

E as tuas roupas, Baby?
Não couberam por causa dos livros – Ela disse
Enternecido, falei:
Ah, é por isso que te amo!

E nos unimos num abraço longo e silencioso
Num dístico despojado & amoroso

Eu levava roupas elementares
Rimbaud e meu violão

Tudo certo!
Nosso destino?
Um país longínquo e frio
Sem carnaval

Tudo certo
Nosso destino?
A louca aventura
De viver o amor
Em fuga

Obscuridade

Essa poesia botada fora
Esse sono sem esplendor
Esse verso que se insinua
Vida a ser redigida
Sem dia marcado

Esse silêncio unânime
Esse dínamo amortecido
Esse solfejar curvado
Este escrever amarrotado
Num riacho turvo

Esse não ser Rimbaud
Esse não ser Homero
Esse ser sem rosto
Porvir que não vem
Só um cansaço cinza

Esse não ser Verlaine
Esse costume epígono
Contraversão
Da luz e da energia

E a sala de máscaras
Todas com pó e umidade
Esse deixar-se obscuro
Esse mostrar-se nu
Dentro de uma gaveta

Lamento como adágio
Dia a dia: planos que morrem
Em doses de tédio e traças
Ser-se eterno ser obsoleto
Esquecido num caderno

O Sortilégio não vem
A cura - a calma não chega
É hora de queimar tudo Versos –
Projetos abjetos Inclusive o poeta

domingo, 19 de janeiro de 2014

Poema para Emily nº 2



1

Ela encontrou minhas cartas de suicida
Antes que eu me jogasse no mar-evasão
Em definitivo 

E me apresentou sua lira fulgente
Diamantes que brilharam para meus olhos
E para minha alma de estanho estilhaçado

Emily me ofertou um novo coração
Deu-me visões - alusões
Um jeito de ser - novamente
Um sorrir que estava aprisionado
Em fotos da década passada

Emily é um espelho
E nos vemos
E nos confundimos
Confluímos

Sonho concreto para repousar
Olor de vida palpitante
Emily sempre
Com as mãos cheias de versos
Ideogramas
E sentimentos

E com seus beijos labirínticos
Sua inteligência seu humor
Consegue emudecer o tempo
Para nós dois...


2

Descobrimos que somos
Da mesma substância rara
Feitos de silêncio cálido
E olhares para o infinito
Somos duas montanhas
Assinalando a imensidão

Juntos, de mãos dadas
Caminhando ao pôr do sol
Mesmo que não haja sol.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Poema para Emily

Quando te conheci
Não foi te conhecer
Foi te reencontrar...

Eras o meu sonho:
A menina
Abraçada em um livro de poemas
Seu olhar tímido
E, ao mesmo tempo, intenso.

Um momento mágico
Daqueles que se espera
No mínimo 35 anos para acontecer:
A menina
E seu livro de poemas!

Há tu, que me encontraste
Através de poemas sonâmbulos
Cheios de solitude!
Quem diria, que irias me dar o impossível
Um sorriso!

Fomos ver o mar
Mas havia algo maior que o mar
Surgindo entre nós
Tu perdoaste meus clichês nervosos
Eu te dei Cecília e uma dedicatória!

Eras o meu sonho realizado:
Uma menina
Com poesia no olhar, na pele, nos lábios
Eu já não sabia brigar com a vida...

Conversamos, conversamos
Até o entardecer
O barulho motorizado da cidade
Uma TV abjeta
Não nos incomodou
Nos fez rir
E entre sorrisos e beijos.

Por fim nos abraçamos em silêncio
E entre teus braços e o silêncio
Me descobri em ti
Percebi que minha vida
Havia mudado naquele instante...

sábado, 11 de janeiro de 2014

Rascunhos do Caderno B (mais uma folha maldita)


1. Faz um calor proveniente das fornalhas do inferno. Mas sinto frio. Muito frio. E medo. Não o medo de estar enfermo, com febre. Não o medo pálido da morte. Somente o medo dessa ausência de mim, ente sem biografia cada vez mais dissipado. Sem utilidade prática.
2. Recitei teus poemas em voz alta como se estivesse rezando. Na esperança de ressuscitar a borboleta morta no peitoril da janela. Perdi mais que o sono. Não sinto gosto de nada. Nada.
3. Esculpi num ímpeto de Pigmalião toda tua essência. Ficaste invisivelmente linda. Mas teu corpo... Não consigo, não posso. Teu corpo se evapora da minha mente antes que eu pense em esculpi-lo. Teu corpo é longes e sem fim. E sem mim.
4. Amo dormir, pois o sono é uma amostra sutil da morte; por isso a morte não me causa espanto. Por isso adormecer tanto me apraz. O descansar de toda minha lástima - que é anedota para o mundo prático & eficiente.  Entretanto perdi o sono. Quando se perde o sono, é possível ver todas as fendas do absurdo de persistir. O livro de sonhos entreaberto, não lido, aborrecido nas cobertas reviradas. A vida entreaberta, não lida revirada, mal vivida.
5. Confesso, sem pejos, que desisti das Elegias de Duíno. Escrevo minhas próprias elegias. Leio parcialmente Nietzsche e Sartre, com o ânimo desbundado. Acrescento um pouco de ulcerações. E a oficina do poeta é um improviso de madeiras velhas e infiltrações no teto, nas paredes e na ambição de beleza.
6. Enchi de explosivos minha sorte; sabotei minha felicidade. Herdei o olhar medroso do meu pai. Meu plano sempre foi ser uma fortaleza. Mas vou me desconstruindo. Tenho areia no rosto dos chutes que levei sorrindo/envergonhado. Estou magro, pálido, com fundilhos caídos no infinito.
7. Minha maldita metralhadora às vezes dispara no alvo errado. São palavras impossíveis de apagar. O arrependimento rasga meu peito. O espelho se envergonha de mim. Qualquer escusa vale menos que uma moeda de um centavo. Não peço desculpas. Perco a batalha. E cada vez mais, perco o amor.

8. O poeta é bem mais que um fingidor! É uma fraude!Um ser cheio de lacunas que caga e mija no vazio. O poeta é um carregador de verduras; estivador de mãos frágeis. Sem aptidões.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Elegia I (apontamento)

Ah! se eu chamasse por Deus
Quem viria em seu lugar
Sorver meu sangue e inocência?

Ah, se eu clamasse por anjos
Que legião astuta viria me fazer rezar
Com a renúncia estéril de um anacoreta?

Desesperado, cavei com mãos vazias
A minha cova...
Unhas partidas, o sangue brotando
Misturando-se à terra suja

Já sem digitais, a carne vívida
Rosto de uma semana insone
Olhei para o fosso aberto
E vi que eu não cabia ali

Mãos covardes demais para tecer
Minha própria morte
Certo apego em forma confusa
De flagelo & frágil espera

A beleza também não se revelaria
Se eu pranteasse por outros ardis simbólicos
Era preciso superar
O eu dentro da fantasia de palha
O eu dentro do fantasma de medo

Superar
Toda a irrisão
E desentranhar
Um olhar fortalecido
Do labirinto de tomos

Cavei um buraco no céu
Para ver o que havia além do céu
Encontrei astros boiando a esmo
Em vias de lactescências
Sem vestes celestiais

Encontrei a mim mesmo
No desespero brando
Da solidão.

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Estudo nº 2


Eu abro a porta,

Ela sorri a minha gentileza

Com seu batom discreto

 

Rosto claro

Cabelo preto

E olhos de carbono

 

Colo claro,

Lábios brilhantes

Salto agulha

 

Diz que me ama

Eu digo “está tudo bem,

Onde vamos?”

 

É um lugar afetado

O mais perfeito vinho

E sutilezas no cardápio

 

Depois olhamos para as estrelas

Ela diz estar segura ao meu lado

 

Seu corpo perfeito

Uma tatuagem discreta no pescoço

Vestida apenas pela luz da janela

 

Eu toco nos seus sonhos

Ela diz que sou único

Depois vai para o espelho

Toma um banho e deita ao meu lado

 

Eu espreito a penumbra

E  não consigo sorrir

Enquanto ela me afaga

 

Estou só

Eu e minha lembrança...

 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Segredo (conto)



Ela disse que era preciso falar algo. Fomos até um bar onde as mesas ficavam na rua. Não fazia calor nem frio. Uma temperatura mediana para uma noite medíocre, sem estrelas e sem grandes perspectivas. Parece que toda a situação que iria se desenrolar fosse velha conhecida. É como pegar um livro para reler. Aquela noite me parecia um livro relido. Eu estava desanimado, imaginando a cena patética. Sim, por que a cena seria patética, com direito a choro e ranger de dentes. E realmente havia um segredo por trás do olhar. Ela, vestida com uma calça cinza desbotada e uma blusa azul e um olhar de desconforto, que tirava um pouco do viço de seu rosto cor de leite.

E lá ficamos, sob o fundo opaco daqueles pensamentos, murmurando reticências. No vácuo de palavras langues, ela sem coragem de desabrochar seu segredo. Os copos libavam a noites sem estrelas e toda palavra perpetuava o silêncio maior. As palavras perdiam-se no ensaio do verdadeiro motivo de estarmos ali. Delicadamente, pontualmente, um cigarro ardia nos lábios e a conversa seguia úmida, tímida e pontuada como um salmo cantado a esmo.

Desgostando do teatro desgastado, gestos e farelos verbais, saí do mórbido estado de desânimo e impetuosamente proferi:

- Tuas palavras matizadas com a tinta mais abjeta sequer escondem a decomposição do teu olhar. Então a tua hombridade ruiu triste nas curvas da noite! Teu corpo disse ao silêncio o que teceste em desconforto! Vamos, rebenta por cima de mim este dejeto que fere teu espontâneo ser! Eu já vim preparado.

- Tu já sabes, disse ela... mesmo não sabendo. Serei a última pessoa que conseguiria te enganar - pois vês a ressaca turva dos meus olhos, sentes a pestilência de minhas lacunas sinistramente emaranhadas em uma preleção ao abismo... Deus ou Diabo, este vinho é amargo e forte, meus lábios se quebram e doem só no pensar em te dizer... Em verdades, poucas, queria falar o que não precisaste ouvir, por isso te convidei a este desencontro.

- Então é verdade que a perfídia osculou nossos pomos? Então é verdade que o teu corpo que não era meu evolou-se, definitivamente, a distâncias mitológicas?

Silenciei. Sorvi um copo inteiro de vinho, que parecia ter gosto de plástico derretido e sorri. Um riso avulso de homem traído que perdeu vergonha de sê-lo. Os olhos dela assemelhavam-se aos de um boi melancólico, prevendo seu abate. Calmamente libertei minha mágoa áspera, sem sangue ou rubor:

- Por que fazer tempestade de tais estilhaços que, juntos, nunca perpetraram nossa efetiva união? Jamais conseguimos sermos íntimos um do outro. Havia mais do que roupas escondendo nossa nudez, havia mais do que saliva no beijo cúmplice e havia minha comunhão com o silêncio no orgasmo, esse brinquedo de dez segundos... Enfim, desconhecemo-nos e não há tempo que mostre quem somos um para o outro...

- Tuas palavras me fazem liberta. Há uma bela civilidade no teu exprimir-se, no teu aceitar! Espanta-me, todavia, este corte frio e sem rancor dos teus lábios. Pensei que haveríamos de discutir um pouco a desarmonia de nossas almas, de nossos corpos...

- Esperavas minha dor e te magoaste com minha indiferença? Não sou indiferente. Odeio apenas a imprecisão, o escuro onde não sabemos se é excremento que se prende em nossos sapatos. Tens de mim esta experiência com a vileza alheia. Nada me apavora. Só não vivo a remoer incertezas. Agora tudo se clareou: és uma vadia. Aceitas mais um copo de vinho?

- Agora foste longe demais! Um pouco de polidez com a minha honestidade de te expor tais abjeções! Se te chamei para este encontro foi pela vontade de ser mais transparente possível contigo.

Ela estava exaltada, seus dedos tremiam. Nunca a vi dessa forma. Sempre parecia tão segura. O que esperava que eu fizesse. Caísse aos seus pés com o peso da sua traição. De repente eu quis atiçar seu fogo maldito. Brincar com a sua vergonha, explorar sua humildade com gosto de culpa. Até por que eu era o corno da história:

- Conta-me como foi esta nova experiência. Foi homem ou mulher? Ambos?

- Não me atormenta que eu vou embora...

- Eu até preferia que me tivesses trocado por uma vulva. Digo-te de coração! Pelo menos algo que eu não posso te ofertar. Ou dois membros fálicos simultâneos, coisa que jamais poderia te dar, por questões fisiológicas e, também, por eu ter certa aversão ao ato sexual com mais de duas pessoas.

- Tu és um porco. Dilacerando minha integridade de revelar-te meu deslize...

- Mas adivinhei por teu olhar rançoso. Esconderias o quê? Há muito tempo tua alma e teu corpo se abriam com parcimônia, teu céu e teu inferno emaranhados no olhar culpado e distante, no desprazer. Tua vulva fria e inócua, latejando o crime. Faz dela agora o que bem entender! Expõe como arte pós-moderna pro teu bel-prazer, que eu sou indiferente. Põe cores vivas em teus pelos pubianos, piercing nos lábios da tua adorável flor carnívora e carnuda, dá mais e mais vida para teu atrativo maior...

- Quer saber de uma coisa: conheci um homem. Enfatizo a palavra homem. Quando, depois da tempestade vislumbrares o espelho, lembra o que agora te digo: Homem! Não uma criança afeita às púberes impressões do crepúsculo, as enfadonhas crises de ordem existencial. Ele me acende, me bate, com a força de um herói helênico semeia meu corpo com um calor branco e sacro, explora lugares que nunca te ofertei por não seres herói sequer da tua malfadada insônia. Eu não preciso da tua afetação merencória, dos teus desgastados carinhos. Quer de saber algo mais? Vai pra puta que te pariu.

- Agora sim, mostra-te sem disfarces...

- É isso mesmo, e digo mais: não és pederasta por falta de coragem, que te resguardou de mais esta distorção. Mãos delicadas, livros, um eterno cansaço às coisas práticas da vida.

Eu por dentro achava graça, tudo que ela sempre quis dizer, uma torrente de desafeto...

- Tenho nojo dos teus beijos, nojo das tuas cuecas sem elástico, nojo do barulho que fazes quando escovas os dentes, nojo da tua família, das tuas músicas pernósticas, da configuração imunda do teu apartamento, nojo da baba no travesseiro enquanto dormes. Profunda raiva do teu silêncio, desse teu maldito olhar desanimado, das tuas indolências estóicas, dos teus sábado à tarde, do teu vício por cinema europeu, desta tua altivez de ex-plebeu vingativo, da tua barba mal feita, dos teus olhos doentios no prazer fugaz de um cigarro.

Eu não podia levar a sério aquilo tudo. Desesperos de uma jogadora imberbe. Eu terminava outro copo de vinho. Pedi outra garrafa e cinzeiro para a garçonete que atendia com cara de nojo. O chão já estava cheio de tocos de cigarro. Se resolvesse contá-los, teria o tempo que tragávamos naquela insólita brincadeira. Acendi mais um. A fumaça era leve, o aroma do tabaco, queimando lentamente, era o tempo que não cansava de queimar, era ela, que queimava e se desfazia em cinzas pelo chão, se desfazia em fumaça flácida como um pano etéreo, plúmbeo, exalando tristeza e raiva do olhar. Enchi o copo dela. Estava melancólica. Pegou um cigarro do meu maço. Acendeu com mãos imprecisas. Tomou o que lhe restava em seu copo num único gole. Pegou a garrafa e encheu novamente...

- Fala alguma coisa, pelo amor de deus! Disse ela.

- Se houvesse algo mais para dizer, mas resumiste a questão.

- Não te magoaste com o que eu disse?

- Claro que não! Eu esperava muito mais. Sempre foi teu sonho esvaziar por ima de mim as palavras da tua coleção de desaforos. Mas eu não te odeio.

- Tu também não me odeias. Se me odiasses, já terias ido embora, disse ela, como se fosse uma súplica.

Olhava para o horizonte como se quisesse fugir dos meus olhos. Começou a brincar com o isqueiro em cima da mesa, depois mexeu nos cabelos, descruzou as pernas. Cantarolava uma canção do Heart.

- Ah tão linda esta música, tivera eu asas, voava às alturas da melodia, tu não achas? A música sublimando as chagas e as nódoas na alma, pudesse eu ser leve...

Uma loucura trágica que se estendeu a um pranto estreito, cheio de humildade. Entre soluços, dizia coisas estranhas:

- És um covarde, porque não lutas por mim, a melhor coisa que apareceu na tua vida, eu te amo desesperadamente, se te traí, foi para acordar teu zelo, mas tu permanece indiferente...reage, diz que me ama...!

Eu de repente me senti responsável por aquele trágico jorro de sentimentalismo, por ter feito graça à infantilidade dela, que sempre gostou de ser bajulada com a palavra amor, nunca se cansou das rimas pobres que tal palavra remete, nem dos enxames de incongruência ocasionada por esta aborrecível falácia. Por um momento senti pena daquele contra-senso feminil. Levei minha cadeira perto dela e lhe beijei o rosto numa clemência calma e ela violentamente encostou seus lábios nos meus num abandono extremo, apaixonadamente. Meus lábios que há uns minutos atrás ela disse ter nojo. Infeliz mulher, que queda vertiginosa, que salto no escuro. Antes de terminar a peça, eu lhe disse, para amenizar as coisas:

- Assumo a culpa! Agora é tarde para tristeza e arrependimentos. No fundo sei que a culpa foi minha, apesar da traição ter sido tua. Eu acho que nasci para ser sozinho, mesmo. Tua traição foi um efeito natural. Acontece. Antes de deixá-la falar qualquer coisa, fui até o balcão de atendimento, pedi mais uma garrafa de vinho e paguei a conta. Voltei à mesa, dei um dinheiro para o táxi dela.

- Eu vou ficar por aqui, bebendo mais um pouco. Enquanto isso tu vais ao meu apartamento e pega o que for teu. Deixa a tua chave com o porteiro.

- Então acabou? Ela perguntou - com resquícios de lágrimas nos olhos. Apesar da dor, estava bonita. Já não havia peso para carregar. Ela era o alívio com olor de vazio. Tão bonita como na primeira vez que a vi, noutro tempo. Mas tinha acabado. Ela saiu e se despediu apenas com um olhar. Voltaria para a casa de sua mãe, que sempre me odiou. Foi até a esquina onde havia um ponto de táxi. Partiu sem maiores sinais.

- Sim, acabou, respondi sozinho, quando ela já havia ido embora. Mais uma tentativa frustrada. Sem grand finale.












quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

A canção de amor do jovem Almafuerte

Não imploro amor
Não mais, nunca mais!
Cinco quedas-livres são suficientes
Para recuperar a aspereza.

Um e-mail às cinco da manhã
Diz que tudo foi derrogado
De uma forma tão cálida
Que o riso suspende a lágrima.

Angioplastia sem anestesia
Ao fim de cinco doses de felonia
Já não sinto dor.

A carótida é uma rosa espedaçada;
Há um projétil cravado na coluna vertebral
Mas não sinto dor
      ‘Stou áspero & duro
      Como esmeril.

Encho o rosto de cicatrizes
Com um prego enferrujado;
Ser belo qual um cavalo morto!
Atrativo como cem caveiras brancas
Num mausoléu...

Tudo derrogado
Sou a solidão nos cafés
A borrasca das tardes pelotenses
Sem máscara sem mágoa
Um leve desconforto
De arame enfarpado na uretra
E uma xícara árida de deserto.

Cinco tentativas vãs de suicídio
Cinco tenebrosos intentos de amor
São mais que suficientes
Para cinco vidas.

Cinco da manhã
Eu amanheço
Enfim.
Não imploro amor

Não mais, nunca mais.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Canção do amor oblíquo

A rua replena de gente
Todas com aspecto de estorvo
Trombando entre si
Atropeleiro, boiada solta,
Possuída
Pelo demônio de possuir

Natalíptico vespeiro
Animosidade nos olhares
Embrutecimento
Truculência nos gestos
Semelhavam fugir do Vesúvio

De repente percebi:
Havia perdido um dos meus sapatos
Ao procurá-lo
Fui derrubado
Pisotearam meu corpo magro e arcaico
Meu rosto, meu púbis, minhas pernas
A dor me fez apagar

Quando acordei, noutro tempo, era deserto
O sol batia nas minhas sobras
Eu era deserto
Sem rosto, sem dentes, sem serventia.

O que sobrou de mim, atirei à tua janela
Quebrou teu vidro
E o meu coração.