sábado, 30 de abril de 2011

Natal


Para Rafael Alves



na mesa familiar
o contrato festivo
arco-íris de aromas
matizes natalinas

e a ausência
de um sorriso
gesto expansivo
ou palavra espontânea

no olhar do encanecido pai, seu drama
momento de revisitar mágoas seculares:
Dinamene perdida num naufrágio
Um Lusíadas salvo e sem valor

diz que o natal é um peru seco e frio
vai deitar-se antes da ceia

a mãe,
sempre a protegê-la
o escudo oblíquo do silêncio
verte um olhar  cansado
e um sorriso tímido
de ausência

os filhos, não mais crianças
adultos ensimesmados
esperam enternecidamente
numa espera de anos
a ceia natalina.


                                        Leonardo Alves

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Lembrança do Mar


há muito mar nos meus ouvidos
há um azul sem fim nos meus olhos
no entanto desconheço o mar

vários heróis na lembrança
um mar sangüíneo  
na balada arcaica do coração
não obstante o mar
é apenas uma idéia

dos antigos poetas
lidos na infância
nos vãos de qualquer
sentar-se à beira de si

o mar é tão irreal
quanto os Campos Elísios
corpo desfalecido
de Aquiles

nasceu, o mar, nos meus braços
carentes de abraços
imagem – hipérbole, lenda
dos desencantos da urbe

no entanto o que são estes estrondos
nos rochedos do meu sentir?
paquetes sulcando meu sonho incorpóreo?
um sorriso com as velas enfunadas?
Cantochão dos pescadores?
brados heróicos dos desbravadores?

É apenas o eterno mar dos meus sentidos...

                                                 
                                       Leonardo Alves

No Largo do Verde Pálido

no largo do verde pálido
dorso lascado, rosto quebrado
escultura perdida no improviso da relva

entre a dor e a calma
sufoca lentamente
o complexo existencial
de uma eterna promessa

a respiração sincopada
suor frio
o corpo treme 

enquanto o sol é gracejo
e a estação vibra suas cores
entoa seu timbre festivo

de repente
ele corre

corre o menino de antes
à mão um cata-vento
que gira ao lábio da brisa

por um momento a felicidade voltou
o embalou
até adormecer.

                        Leonardo Alves

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Brinquedos no Sótão





Os brinquedos desamparados
No sótão
Definham
Ninguém tem coragem
De colocá-los fora

Os brinquedos órfãos
lembram do menino
A brincar
Ninguém tem coragem
De contrariá-los

Para eles, o menino era um deus
Pois atribuía sentido às suas vidas de brinquedo
Às suas aventuras de plástico

Eles choram como se fossem vivos
Eles morrem aos poucos como se fossem gente
Os brinquedos no sótão
Pensam em deus e num conceito para acreditar

Para eles, o menino era um deus
Pra o menino, houve algum deus?
O menino
Morto aos seis anos de idade…

                                   Leonardo Alves

Estudo nº 1


Eu estou tão gasto
Para falar de amor
Então emudeço
E colho o teu desprezo

Estou muito cansado
Dessas frases falsas
De casais aparvalhados
E tenho teu olhar ferido

Se dissesse que te amo
Tu acalmarias?
Não digo nada
Vou ler e dormir

Se eu dissesse que te amo
Tu adormecerias?
Não digo nada
Pega as roupas, pode ir...

A porta bate com o mistério
Da alma feminina
Ah querida foste embora tão cedo…

Ah menina não descobriste
Que amor não se fala
Acontece sem palavras

E eu fico sozinho esperando
Que retornes sem dizer nada...

As palavras são espantalhos
As palavras são falácias
Simplesmente me abraça...

                               Leonardo Alves

Poema Confissão




Era seda branca
Leve
Fluida
Flácida

Quase  bruma
Quase nada
Entretanto
Mostrava o infinito.

                             
                           Leonardo Alves

Uma Ilha



 Para Rodrigo Oliveira

Fria noite pelotense
Soprando Lobo da Costa
Assombrada
Por vultos de granito

Noite londrina
Orgulho e majestade
Ingleses em sobretudo
Damas pobres calçando leve
A moda paris

Fria noite
Mar de nostalgias
Cigarros
Veleidades mortas
Queixa silenciosa no olhar

Noite sem amor
E outros artifícios
Plenitude individual
Alcançada na ausência

Como não ser
Neste arquipélago
Uma ilha?
Embalado na lamúria do vento
Recitando Lobo da Costa...

                                          Leonardo Alves

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Canção Lusitana


Para Vinícius Estima

Fez-se mar e pélagos de vento
Pouco guardou dos seus tesouros
Ah! Lágrima lusitana, lenda antiga,
Há muito, ruína. Mas Inda vibra
No espaço o clarim lusíada 
Estranha sinfonia: quatro vozes
Quatro Pessoas alçam a nação.
Fez-se mar e continentes de vento:
Povo assinalado à saudade
Próspero ao sofrimento marítimo
Desatentos desalentados
 - na cadência elegíaca
Da jangada de pedra -
Em meio século o império se desfaz
Mas eles crescem se o mar se fecha
E a terra escasseia...

Cantam em verbos
No ímpeto de Lobo Antunes
O esplendor de Portugal!

                   Leonardo Alves

Poema sturm und drang

 


Chorei
Quando Werther
Morreu

Senti deveras
PorqueWerther
Era eu.

                      Leonardo Alves

terça-feira, 26 de abril de 2011

O Casaco do Homem Morto


Ando pela rua com o casaco do homem morto
- Agora meu casaco cinza -
Não sei como era o falecido dono
Sei que está morto.

Seria relevante buscar informações sobre tal homem
Que está morto?

É um casaco antigo
Por isso único
Forro impecável
Um pouco grande nos meus ombros
Se houvessem resolvido enterrá-lo com o casaco
Eu não estaria elegante.

Mas o casaco foi salvo
Comprei-o por singela quantia
Triste lembrança do pobre falecido.

Mas, mesmo com o casaco impecável
Do homem morto,
Sinto-me triste
Será que vem essa tristeza
Do casaco que meu amigo morto
Comprou em 12 vezes no longínquo 1989?
Um casaco cinza
Não sei por que, vejo tudo cinza...

                                             Leonardo Alves

Autorretrato em Sépia



Gosto de caminhar sozinho em certas horas
Sem ter muito para onde ir
Caminhar como se fosse livre deveras
Descobrindo nas mesmas ruas de sempre
A projeção de uma cidade nova.

Tenho meu Fernando Pessoa sempre à mão
Uma xícara de café
Um cigarro
Uma música para cada estado da alma
Tenho uma televisão
Que transformei em aquário
Com os mais simpáticos peixinhos
Tenho um sapato marrom que não canso de usar.

Gosto de assistir o pôr-do-sol pela janela do meu quarto
Quando resolvo não caminhar
Estando triste, de preferência.
A tristeza é uma companheira
Me acostumei tanto
Que não saberia viver sem ela.

Gosto de estar feliz, também
Mas não demais
Felicidade: fim de semana com a família
Almoço de domingo
revisitando a vida
A vida, simplesmente.

Adoro as lembranças
Meus amigos
A thing of beauty is a joy for ever
Os falecidos
Cada vez mais vivos no meu coração
Minha infância cada vez mais viva.

Eu me dando conta que cada momento é eterno
Eu me dando conta que o tempo não passa
O tempo são todos os momentos possíveis
Sempre existindo
A despeito da morte.



                              Leonardo Alves

Anotações para um Noturno


Preciso de um olhar triste para fortalecer minhas palavras
Um olhar de quem não vive senão para cultivar as próprias feridas
Preciso de um olhar para iluminar minhas expressões desorquestradas

Um olhar triste como arquitetura de cemitério
Um olhar de pássaro morto
Para cerzir esta nênia sem fim
E receber o artesanato vão de uma lua fanada

Um olhar triste de mãe que perdeu o filho único
Olhar do atleta mutilado ao espelho
Uma tristeza em tons menores
Com direito a quarteto de cordas
E pianíssimo lacrimejante

Deus que jamais foi meu
Um olhar triste para esta melodia
Um olhar triste igual ao meu.

                                            
                                            Leonardo Alves

Porto


Abarcaram minhas naus
A fábula e o abismo
Em vão tentei provar
A esfericidade da terra

Quantos outonos
Sem fruto
Num porto de pedra

E a ilusão da inexistência
Dos monstros marinhos
De se chegar às índias
Contornando a costa africana

Não, não me é possível
Qualquer riqueza oriental
Ou glória marítima
Deus criou somente para mim
Singular mitologia
E um mundo plano
Para minhas naus caírem no espaço.

                                                   Leonardo Alves

Flores no Hospital


Em verdade ela nasceu no âmago do corpo
Qual frágil margarida
Flor singela dos campos.

Entretanto alimentou-se das noites,
Quimeras
E lágrimas.

Cresceram-lhe pétalas de aço,
Espinhos de vidro estilhaçado

Rompendo as paredes da vida
Desentranhando do ser a dor profunda
De morrer com fome e sede;
Mesmo depois de uma vida
De amor e altruísmo.

Enquanto ela cresce
O ser se decompõe
Frágil fosso sem líquido
Fonte de ignotas águas;

E o dia corre pela janela
Do leito estreito, estéril
Vê-se que o dia está sombrio,

O dia tenta perscrutar
A flor
No âmago do corpo.


                                       Leonardo Alves