quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Segredo (conto)



Ela disse que era preciso falar algo. Fomos até um bar onde as mesas ficavam na rua. Não fazia calor nem frio. Uma temperatura mediana para uma noite medíocre, sem estrelas e sem grandes perspectivas. Parece que toda a situação que iria se desenrolar fosse velha conhecida. É como pegar um livro para reler. Aquela noite me parecia um livro relido. Eu estava desanimado, imaginando a cena patética. Sim, por que a cena seria patética, com direito a choro e ranger de dentes. E realmente havia um segredo por trás do olhar. Ela, vestida com uma calça cinza desbotada e uma blusa azul e um olhar de desconforto, que tirava um pouco do viço de seu rosto cor de leite.

E lá ficamos, sob o fundo opaco daqueles pensamentos, murmurando reticências. No vácuo de palavras langues, ela sem coragem de desabrochar seu segredo. Os copos libavam a noites sem estrelas e toda palavra perpetuava o silêncio maior. As palavras perdiam-se no ensaio do verdadeiro motivo de estarmos ali. Delicadamente, pontualmente, um cigarro ardia nos lábios e a conversa seguia úmida, tímida e pontuada como um salmo cantado a esmo.

Desgostando do teatro desgastado, gestos e farelos verbais, saí do mórbido estado de desânimo e impetuosamente proferi:

- Tuas palavras matizadas com a tinta mais abjeta sequer escondem a decomposição do teu olhar. Então a tua hombridade ruiu triste nas curvas da noite! Teu corpo disse ao silêncio o que teceste em desconforto! Vamos, rebenta por cima de mim este dejeto que fere teu espontâneo ser! Eu já vim preparado.

- Tu já sabes, disse ela... mesmo não sabendo. Serei a última pessoa que conseguiria te enganar - pois vês a ressaca turva dos meus olhos, sentes a pestilência de minhas lacunas sinistramente emaranhadas em uma preleção ao abismo... Deus ou Diabo, este vinho é amargo e forte, meus lábios se quebram e doem só no pensar em te dizer... Em verdades, poucas, queria falar o que não precisaste ouvir, por isso te convidei a este desencontro.

- Então é verdade que a perfídia osculou nossos pomos? Então é verdade que o teu corpo que não era meu evolou-se, definitivamente, a distâncias mitológicas?

Silenciei. Sorvi um copo inteiro de vinho, que parecia ter gosto de plástico derretido e sorri. Um riso avulso de homem traído que perdeu vergonha de sê-lo. Os olhos dela assemelhavam-se aos de um boi melancólico, prevendo seu abate. Calmamente libertei minha mágoa áspera, sem sangue ou rubor:

- Por que fazer tempestade de tais estilhaços que, juntos, nunca perpetraram nossa efetiva união? Jamais conseguimos sermos íntimos um do outro. Havia mais do que roupas escondendo nossa nudez, havia mais do que saliva no beijo cúmplice e havia minha comunhão com o silêncio no orgasmo, esse brinquedo de dez segundos... Enfim, desconhecemo-nos e não há tempo que mostre quem somos um para o outro...

- Tuas palavras me fazem liberta. Há uma bela civilidade no teu exprimir-se, no teu aceitar! Espanta-me, todavia, este corte frio e sem rancor dos teus lábios. Pensei que haveríamos de discutir um pouco a desarmonia de nossas almas, de nossos corpos...

- Esperavas minha dor e te magoaste com minha indiferença? Não sou indiferente. Odeio apenas a imprecisão, o escuro onde não sabemos se é excremento que se prende em nossos sapatos. Tens de mim esta experiência com a vileza alheia. Nada me apavora. Só não vivo a remoer incertezas. Agora tudo se clareou: és uma vadia. Aceitas mais um copo de vinho?

- Agora foste longe demais! Um pouco de polidez com a minha honestidade de te expor tais abjeções! Se te chamei para este encontro foi pela vontade de ser mais transparente possível contigo.

Ela estava exaltada, seus dedos tremiam. Nunca a vi dessa forma. Sempre parecia tão segura. O que esperava que eu fizesse. Caísse aos seus pés com o peso da sua traição. De repente eu quis atiçar seu fogo maldito. Brincar com a sua vergonha, explorar sua humildade com gosto de culpa. Até por que eu era o corno da história:

- Conta-me como foi esta nova experiência. Foi homem ou mulher? Ambos?

- Não me atormenta que eu vou embora...

- Eu até preferia que me tivesses trocado por uma vulva. Digo-te de coração! Pelo menos algo que eu não posso te ofertar. Ou dois membros fálicos simultâneos, coisa que jamais poderia te dar, por questões fisiológicas e, também, por eu ter certa aversão ao ato sexual com mais de duas pessoas.

- Tu és um porco. Dilacerando minha integridade de revelar-te meu deslize...

- Mas adivinhei por teu olhar rançoso. Esconderias o quê? Há muito tempo tua alma e teu corpo se abriam com parcimônia, teu céu e teu inferno emaranhados no olhar culpado e distante, no desprazer. Tua vulva fria e inócua, latejando o crime. Faz dela agora o que bem entender! Expõe como arte pós-moderna pro teu bel-prazer, que eu sou indiferente. Põe cores vivas em teus pelos pubianos, piercing nos lábios da tua adorável flor carnívora e carnuda, dá mais e mais vida para teu atrativo maior...

- Quer saber de uma coisa: conheci um homem. Enfatizo a palavra homem. Quando, depois da tempestade vislumbrares o espelho, lembra o que agora te digo: Homem! Não uma criança afeita às púberes impressões do crepúsculo, as enfadonhas crises de ordem existencial. Ele me acende, me bate, com a força de um herói helênico semeia meu corpo com um calor branco e sacro, explora lugares que nunca te ofertei por não seres herói sequer da tua malfadada insônia. Eu não preciso da tua afetação merencória, dos teus desgastados carinhos. Quer de saber algo mais? Vai pra puta que te pariu.

- Agora sim, mostra-te sem disfarces...

- É isso mesmo, e digo mais: não és pederasta por falta de coragem, que te resguardou de mais esta distorção. Mãos delicadas, livros, um eterno cansaço às coisas práticas da vida.

Eu por dentro achava graça, tudo que ela sempre quis dizer, uma torrente de desafeto...

- Tenho nojo dos teus beijos, nojo das tuas cuecas sem elástico, nojo do barulho que fazes quando escovas os dentes, nojo da tua família, das tuas músicas pernósticas, da configuração imunda do teu apartamento, nojo da baba no travesseiro enquanto dormes. Profunda raiva do teu silêncio, desse teu maldito olhar desanimado, das tuas indolências estóicas, dos teus sábado à tarde, do teu vício por cinema europeu, desta tua altivez de ex-plebeu vingativo, da tua barba mal feita, dos teus olhos doentios no prazer fugaz de um cigarro.

Eu não podia levar a sério aquilo tudo. Desesperos de uma jogadora imberbe. Eu terminava outro copo de vinho. Pedi outra garrafa e cinzeiro para a garçonete que atendia com cara de nojo. O chão já estava cheio de tocos de cigarro. Se resolvesse contá-los, teria o tempo que tragávamos naquela insólita brincadeira. Acendi mais um. A fumaça era leve, o aroma do tabaco, queimando lentamente, era o tempo que não cansava de queimar, era ela, que queimava e se desfazia em cinzas pelo chão, se desfazia em fumaça flácida como um pano etéreo, plúmbeo, exalando tristeza e raiva do olhar. Enchi o copo dela. Estava melancólica. Pegou um cigarro do meu maço. Acendeu com mãos imprecisas. Tomou o que lhe restava em seu copo num único gole. Pegou a garrafa e encheu novamente...

- Fala alguma coisa, pelo amor de deus! Disse ela.

- Se houvesse algo mais para dizer, mas resumiste a questão.

- Não te magoaste com o que eu disse?

- Claro que não! Eu esperava muito mais. Sempre foi teu sonho esvaziar por ima de mim as palavras da tua coleção de desaforos. Mas eu não te odeio.

- Tu também não me odeias. Se me odiasses, já terias ido embora, disse ela, como se fosse uma súplica.

Olhava para o horizonte como se quisesse fugir dos meus olhos. Começou a brincar com o isqueiro em cima da mesa, depois mexeu nos cabelos, descruzou as pernas. Cantarolava uma canção do Heart.

- Ah tão linda esta música, tivera eu asas, voava às alturas da melodia, tu não achas? A música sublimando as chagas e as nódoas na alma, pudesse eu ser leve...

Uma loucura trágica que se estendeu a um pranto estreito, cheio de humildade. Entre soluços, dizia coisas estranhas:

- És um covarde, porque não lutas por mim, a melhor coisa que apareceu na tua vida, eu te amo desesperadamente, se te traí, foi para acordar teu zelo, mas tu permanece indiferente...reage, diz que me ama...!

Eu de repente me senti responsável por aquele trágico jorro de sentimentalismo, por ter feito graça à infantilidade dela, que sempre gostou de ser bajulada com a palavra amor, nunca se cansou das rimas pobres que tal palavra remete, nem dos enxames de incongruência ocasionada por esta aborrecível falácia. Por um momento senti pena daquele contra-senso feminil. Levei minha cadeira perto dela e lhe beijei o rosto numa clemência calma e ela violentamente encostou seus lábios nos meus num abandono extremo, apaixonadamente. Meus lábios que há uns minutos atrás ela disse ter nojo. Infeliz mulher, que queda vertiginosa, que salto no escuro. Antes de terminar a peça, eu lhe disse, para amenizar as coisas:

- Assumo a culpa! Agora é tarde para tristeza e arrependimentos. No fundo sei que a culpa foi minha, apesar da traição ter sido tua. Eu acho que nasci para ser sozinho, mesmo. Tua traição foi um efeito natural. Acontece. Antes de deixá-la falar qualquer coisa, fui até o balcão de atendimento, pedi mais uma garrafa de vinho e paguei a conta. Voltei à mesa, dei um dinheiro para o táxi dela.

- Eu vou ficar por aqui, bebendo mais um pouco. Enquanto isso tu vais ao meu apartamento e pega o que for teu. Deixa a tua chave com o porteiro.

- Então acabou? Ela perguntou - com resquícios de lágrimas nos olhos. Apesar da dor, estava bonita. Já não havia peso para carregar. Ela era o alívio com olor de vazio. Tão bonita como na primeira vez que a vi, noutro tempo. Mas tinha acabado. Ela saiu e se despediu apenas com um olhar. Voltaria para a casa de sua mãe, que sempre me odiou. Foi até a esquina onde havia um ponto de táxi. Partiu sem maiores sinais.

- Sim, acabou, respondi sozinho, quando ela já havia ido embora. Mais uma tentativa frustrada. Sem grand finale.












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