quarta-feira, 15 de junho de 2011

Estudo para duas Odes

Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

Fernando Pessoa – Álvaro de Campos

I

As cartas de suicida estão fora de moda
Suicídio está fora de moda
Foi uma febre romântica...

Qual o sentido implícito de tirar a própria vida?

Gosta de Mário Sá Carneiro,
Hemingway,
Sylvia Plath
Você precisa ser tão idiota como eles?

Suicídio é um ato gratuito
Só faz sentido
Para quem deixa de existir...

Ah, você queria dizer algumas verdades
na sua carta de suicida?
Na verdade pensa em escrever várias missivas
E endereçá-las a toda a corja de canalhas
Que lhe tira o sono a noite?
Chega a escrevê-las mentalmente
E sente até certa volúpia neste ato idealizado...
Mas será preciso morrer para fazer isso?
Já que você tem coragem o suficiente para pensar em tirar a própria vida
Pegue um pouco menos de coragem do seu íntimo
Coragem, só o suficiente para regurgitar o que lhe fere o coração
Vamos lá, eu lhe empresto o telefone
Ligue para A
Diga que é um pretensioso filho da puta
Ligue para B
Chame-o de mascarado sem-vergonha
corno, trapaceiro
Se não tiver o telefone de C
Mande e-mail
Procure-o em rede social

Peça divórcio...
Atire o monitor e o teclado por cima do seu colega vadio
Talvez você até consiga ser encostado por loucura
Se for algum morto que lhe tira o sono
Vá até o túmulo e mije na lápide
Mas não me venha com essa merda de se matar...

II

Ah, quer mostrar para o mundo que você é importante
E só depois de morto é que todo mundo compreenderá?
Tredo engano, meu querido
Houve um tempo em que as pessoas eram importantes
Hoje descobriu-se que os cachorros são ótimos amigos
E que os gatos só dormem e não argumentam
A verdade é que a morte do gato da família causará mais abalo
Do que a sua própria morte.

Sua morte trará mais luz a todos
E você não estará vivo para ver abrirem uma clareira
Naquele lugar onde havia a sua mesa e os seus objetos
Sobrará mais espaço na casa
Sim, porque suas quinquilharias, seus livros, discos
Todos estes objetos que para você tinha um valor especial
com sua morte, só servirão para ocupar espaço...
Tudo isso, vão mandar embora
Vender a preço de banana para as lojas especializadas
Na verdade será a grande alegria para os comerciantes de artigos usados
Seu guarda-roupas também
Tudo doado para um primo pobre ou conhecido desempregado
Aqueles sapatos que você não tinha acabado de pagar
Também vão trilhar o chão em outros pés
Quiçá, indignos

Não, você não é tão importante assim
Com sua ausência, as pessoas ficarão mais aliviadas
Sem o seu jazz-fusion, paixão de todos os dias
Não haverá cabelos seus na pia
para sua esposa reclamar

Mas a verdadeira alegria, seus filhos
Daí a pouco tempo terão outra figura paterna
Quiça um bêbado, ou um viciado em futebol
Que passará para eles os valores verdadeiros da vida:
Não ficar na segunda divisão
E gritar GOL – da forma mais viril possível
E, antagonicamente,
Afetada

Há formas de protesto mais sutis e que fazem maior efeito
Você engoliu muita bílis negra, amarela
E agora está nauseado com tudo?
Não precisa de uma arma
Use apenas palavras
Defenda-se com as palavras
Crie a própria vida com palavras
Castelos de metáforas
Exércitos de onomatopeias
Mundos de oximoros

E a morte,
Não precisa procurá-la
Ela já nasceu com você.

2 comentários:

Profano disse...

Acho que quem adquire o direito de duvidar do suicídio acaba compulsoriamente adquirindo o direito de duvidar de toda a realidade, porque existem também aqueles que foram suicidados por outros.

Unknown disse...

Não sei se captei sentido do teu comentário. Mas vou te explicar a gênese do poema: eu estava num sebo famoso da cidade e o dono me disse que a morte dos colecionadores é que abastecia o seu negócio com "raridades" (discos, livros). Daí comecei a pensar que a morte de alguém pode trazer mais alegrias para a sociedade (e familiares) do que tristeza. Partindo desse pressuposto, comecei a desencavar outras alegrias implícitas na morte de um indivíduo hipotético. No meio do caminho lembrei do poema do Álvaro de Campos e gostei do possível diálogo (da desleitura, como diria Harold Bloom). Talvez o eu-lírico seja a minha persona lúcida, tentando me persuadir de que o suicídio não vale a pena, seja como forma de protesto ou cansaço existencial mesmo.
Tentando entender teu comentário, acabei elencando 3 tipos de suicídio: (1)o suicídio físico, literal, que a pessoa tira a própria vida ; (2)o suicídio em vida e deliberado, quando o indivíduo simplesmente renuncia a sua própria identidade, força interior e cai numa neurastenia, num desencanto, mas continua vivo, a despeito de não estar vivendo e (3)o suicídio em vida não-deliberado, no qual o indivíduo, movido por forças maiores (pobreza, por exemplo), acaba por renunciar a sua personalidade e objetivos sem se dar conta disso. Pensa que está vivendo, mas está apenas sobrevivendo com uma existência de migalhas. Esses são os suicidados pelos outros, usando a tua expressão.