sábado, 4 de junho de 2011

Poesia Contemporânea Brasileira: Micro-antologia


Já que o foco principal deste blog é a produção em versos, gostaria de fazer um intervalo dos meus próprios textos e tentar esboçar aqui um sucinto panorama da poesia contemporânea. Creio que amostragem seria a palavra certa para definir esta despretensiosa reunião de textos. Ou melhor: uma dose homeopática da poesia contemporânea brasileira. Não me arrisco a tentar qualquer sistematização. Começando pelos anos 70, na chamada Poesia Marginal, sigo até o início dos 2000.

Para quem se interessar pelo assunto, sugiro os livros 26 Poetas Hoje e Esses poetas, organizados por Heloisa Buarque de Hollanda e Na virada do Século – Poesia de invenção do Brasil, organizado por Frederico Barbosa e Cláudio Daniel.

Para quem não se interessa por antologias, a a melhor sugestão é buscar pelos livros dos poetas, em livrarias e sebos.


O RISO AMARELO DO MEDO

Brandindo um espadim
do melhor aço de Toledo
ele irrompeu pela Academia
Cabeças rolam por toda parte
é preciso defender o pão de nossos filhos
respeitar a autoridade
O atualíssimo evangelho dos discursos
diz que um deus nos fez desiguais
(FRANCISCO ALVIM)


JOGOS FLORAIS
I
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.
(ANTONIO CARLOS DE BRITO)


PRAÇA DA REPÚBLICA DOS MEUS SONHOS

A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem
de morfina
a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincando
na tarde de esterco
Praça da República dos meus sonhos
onde tudo se faz febre e pombas crucificadas
onde beatificados vêm agitar as massas
onde García Lorca espera seu dentista
onde conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces
os meninos tiveram seus testículos espetados pela multidão
lábios coagulam sem estardalhaço
os mictórios tomam um lugar na luz
e os coqueiros se fixam onde o vento desarruma os cabelos
Delirium Tremens diante do Paraíso bundas glabras sexos de papel
anjos deitados nos canteiros cobertos de cal água fumegante nas
privadas cérebros sulcados de acenos
os veterinários passam lentos lento
Dom Casmurro
há jovens pederastas embebidos em lilás
e putas com a noite passeando em torno de suas unhas
há uma gota de chuva na cabeleira abandonada
enquanto o sangue faz naufragar as corolas
Oh minhas visões lembranças de Rimbaud praça da República dos meus
Sonhos última sabedoria debruçada numa porta santa
(ROBERTO PIVA)

COGITO

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.
(TORQUATO NETO)


PSICOGRAFIA

Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não soube e digo
da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto
(ANA CRISTINA CESAR)

LIVROS DE CONTOS

Alma emputecida
Sombra esquisita
Se esquiva
Entre
Laços de Família
(WALLY SALOMÃO)


GUARDAR

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guarda-se o que se quer guardar.
(ANTÔNIO CÍCERO)




RAZÃO DE SER

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
(PAULO LEMINSKI)

SONETO SÁDICO

Legal é ver político morrendo
de câncer, quer na próstata ou no reto,
e, pra que meu prazer seja completo,
tenha um tumor na língua como adendo. 
 
Se for ministro, então, não me arrependo
de ser-lhe muito mais que um desafeto,
rogar-lhe morte igual à que um inseto
na mão da molecada vai sofrendo. 
 
Mas o melhor de tudo é o presidente
ser desmoralizado na risada
por quem faz poesia como a gente. 
 
Ele nos fode a cada canetada,
mas eu, usando só o poder da mente,
espeto-lhe o loló com minha espada.
(GLAUCO MATOSO)

CANÇÃO DAS MUSAS

a noite arrasta seus cascos
abrindo clareiras no acaso
que precede o som.

até
as estrelas, atrás,
estão mais
acesas

se por tristezas
a morte que acusas
não couber em belezas

linha por linha
arrastem-nos como a um cão
de espumas
levem-nos a parte alguma.
(RODRIGO GARCIA LOPES)



SOBERANIA

Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que
tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo
do vento escorregava muito e eu não consegui
pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso
carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos
deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado
e disse que eu tivera um vareio da imaginação.
Mas que esses vareios acabariam com os estudos.
E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li
alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio.
E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria
das idéias e da razão pura. Especulei filósofos
e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande
saber. Achei que os eruditos nas suas altas
abstrações se esqueciam das coisas simples da
terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo
— o Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase:
A imaginação é mais importante do que o saber.
Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei
um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu
olho começou a ver de novo as pobres coisas do
chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E
meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam
o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no
corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas
podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as
próprias asas. E vi que o homem não tem soberania
nem pra ser um bentevi.
(MANOEL DE BARROS)
TREZE

As lâminas da língua
talham balelas na pele-página

o corte agudo, exato, não
deixa cicatriz, mas tatuagens

que se movem ao revés
nas rugas da linguagem

o corpo escravo da fala
se verga, esgástulo, desapruma

e o verbo esgrima com a
víscera, infecundo de

tempo, espaço, gesto:
frase ou mera mímica?

anêmica a palavra míngua
à revelia do sentido

sem norte, ensimesmada,
arremedo de tatibitate,

ora engodo, ora miasma,
lance de dados viciados

rouca ou farpa a voz
perde o fio da meada

e adentra a selva obscura,
coisa mental no branco imenso

língua e voz, confrontadas,
se renegam. Ennui.
(REYNALDO DAMÁZIO)
UM FIO DE LUZ

Um fio de luz:
tesoura que baste
para tornar nítido
o que

sobre a cômoda,
sobre a mesa:
um lápis, uma pera,
um cálice,

que nossos olhos
podem anotar
sem complicação,
sem gula ou fastio.

Mesmo da morte a repentina
ternura, se vista de tal modo:
num vaso, haste, pétala
que cede.

Sobre a cômoda, sobre a mesa,
belezas que um nosso gesto
pode anexar ao peito
sem grande peso.

Ou, ainda, o peso nenhum
de quando nenhum atavio:
tábua
sem nada em cima.
(EUCANAÃ FERAZ)

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