terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Rascunhos do Caderno B

I
Se houvesse um jeito prático de apagar a cara de parvo no espelho. Queimar as cartas e confissões que escaparam das mãos & lábios. Infelizmente elas chegaram aos seus destinatários. Está feito. A alma foi desnudada. Há dez anos eu já era velho o suficiente para aprender certas coisas. Continuo o parvo no espelho.

II
Acendo um cigarro com culpa. Apago o cigarro no cinzeiro enferrujado com mais culpa ainda. Tenho culpa do que fiz e do que não fiz. Ainda não nasci. Por enquanto sou um sorriso amarrotado e complacente. A culpa extrema de ter vivido sem nascer.

III
Escolho a maçã menos podre que adormecia sua carne já amarelada no prato. Minha amiga disse que levo à sério demais a vida. Concordo sem pensar, com os olhos parados. Duas lesmas inexpressivas. Cogito dizer minha dor, febre e demônios. Ela não entenderia. Eu digo que estou com sono, apenas.

IV
Espero feito babaca a ligação que não chega, o E-mail que não vem. Nem a modernidade me conecta. De repente não me sinto gente. Olho no espelho, novamente: sou o grande Gregor-Barata com maçãs cravadas no corpo!

V
Tu não precisa ficar constrangida por não ter assunto comigo. Isso acontece sempre. Já acostumei. Escreve à vontade tuas mensagens no Smartphone. Eu não tenho gosto nem cheiro para o mundo contemporâneo. Quando tu menos esperar, eu já terei desaparecido no ar.

VI
Acordei chapado, tropeçando nos móveis. Buick Makane é o despertador febril dizendo que o devaneio recomeçou. Recomeçou o quê? Preciso de mais tempo para descobrir. Ainda por causa dos remédios de dormir, é lento reaprender a respirar e agir. Perco um pouco de mim no banho: cabelos, células mortas. Faço um café, engulo amargamente - não acordo. Faz dias que não acordo nem entro em acordo comigo mesmo.

VII
Ouço Bruce Springsteen com fones de ouvido dentro do ônibus rangendo metais Aumento o volume, pois o ônibus parece que vai se partir em pedaços. Olho para as caras inexpressivas. Todos também estão cansados da rotina; o azedume é unânime. Alguns fingem melhor. Só.

VIII
Saio para a zona central. Sempre a ideia idiota de que um passeio desses alivia a alma, mente e o caralho. Estou louco para consumir e tapar lacunas.  Nenhuma oferta; e é o sol que me consome. Ar abafado e meninas lindas palrando com gosma de lesma nos lábios.

IX
Almoço sem graça, sozinho. Envergonhado num canto. Nenhuma palavra. Sou surdo-mudo. Palavras geram desconforto e dor. Escondo choro no saleiro. Engulo a tristeza co'a comida morta-processada que prende no esôfago. Tudo burocraticamente inócuo. Inclusive comer.

X
Se faltasse luz todos iríamos embora. A luz realmente cai. Há um despontamento postiço. A eletricidade volta em seguida. As máquinas funcionam que é uma maravilha. Todos corrigem alegrias. Mais um dia igual. Eu é que não funciono como deveria. Fico louco a prestação...

XI
A ideia flácida de mostrar sentidos, sentimentos, pontos de vista. Ninguém liga. Há gente demais sem perna, sem braço, sem casa. Por que alguém se importaria com sentimentos e vazio de existir? Se eu me matasse, talvez me levassem a sério. Percebessem que estou aleijado por dentro. Mas não valeria à pena. Escrever é a forma mais saudável de morrer.

XII
Eu bebia religiosamente. Aguardente e outros substitutivos. Hoje estou sóbrio. Oito meses vendo tudo sem a mente anuviada. Sem a alegria furta-cor que me ajudou sempre a escrever canções. Já não morro de cirrose aos 49. Num pequeno gesto, mudei meu destino. Morro, agora, aos 35, de desânimo.

XIII

Clara chega de amarelo-alegria. Bela e sensível. Fala coisas bonitas e eu acordo um pouco. Clara tem um jardim. Pessoas felizes geralmente tem um jardim para cuidar. Acho que um dos segredos da vida é ter um jardim. Enquanto não tenho meu jardim, tomo fármacos que me fazem adormecer. O melhor que tenho feito é dormir. 

6 comentários:

Lise Machado disse...

Leo! Tu tá escrevendo muito! Que lindeza tudo! Parabéns! Essa acidez me comove.

Unknown disse...

Muito obrigado por prestigiar meus escritos. Eu não tinha certeza de que valiam algo esses sketches desajeitados. Obrigado mesmo. É um grande incentivo! Bj

Unknown disse...

Uma boa dose de pessimismo para um domingo de esperas... nada melhor! Gostei da tua escrita :-)

Unknown disse...

Ah, Vanessa! Fico grato com tuas palavras! Teu comentário me dá alegria e incentivo. Abração.

Estima disse...

Buenas, se o cara tá escrevendo não pode tá morto... Saudades do Amigo!

Unknown disse...

E aí Mr. Estima! Estou vivo, sim! obrigado por visitar meu blog! Saudades, também, brother! Abração!