I
Se houvesse um jeito prático de
apagar a cara de parvo no espelho. Queimar as cartas e confissões que escaparam
das mãos & lábios. Infelizmente elas chegaram aos seus destinatários. Está feito.
A alma foi desnudada. Há dez anos eu já era velho o suficiente para aprender
certas coisas. Continuo o parvo no espelho.
II
Acendo um cigarro com culpa.
Apago o cigarro no cinzeiro enferrujado com mais culpa ainda. Tenho culpa do
que fiz e do que não fiz. Ainda não nasci. Por enquanto sou um sorriso
amarrotado e complacente. A culpa extrema de ter vivido sem nascer.
III
Escolho a maçã menos podre que
adormecia sua carne já amarelada no prato. Minha amiga disse que levo à sério
demais a vida. Concordo sem pensar, com os olhos parados. Duas lesmas
inexpressivas. Cogito dizer minha dor, febre e demônios. Ela não entenderia. Eu
digo que estou com sono, apenas.
IV
Espero feito babaca a ligação que
não chega, o E-mail que não vem. Nem a modernidade me conecta. De repente não
me sinto gente. Olho no espelho, novamente: sou o grande Gregor-Barata com
maçãs cravadas no corpo!
V
Tu não precisa ficar constrangida
por não ter assunto comigo. Isso acontece sempre. Já acostumei. Escreve à
vontade tuas mensagens no Smartphone.
Eu não tenho gosto nem cheiro para o mundo contemporâneo. Quando tu menos
esperar, eu já terei desaparecido no ar.
VI
Acordei chapado, tropeçando nos móveis. Buick
Makane é o despertador febril dizendo que o devaneio recomeçou. Recomeçou o
quê? Preciso de mais tempo para descobrir. Ainda por causa dos remédios de
dormir, é lento reaprender a respirar e agir. Perco um pouco de mim no banho:
cabelos, células mortas. Faço um café, engulo amargamente - não acordo. Faz
dias que não acordo nem entro em acordo comigo mesmo.
VII
Ouço Bruce Springsteen com fones
de ouvido dentro do ônibus rangendo metais Aumento o volume, pois o ônibus
parece que vai se partir em pedaços. Olho para as caras inexpressivas. Todos
também estão cansados da rotina; o azedume é unânime. Alguns fingem melhor. Só.
VIII
Saio para a zona central. Sempre
a ideia idiota de que um passeio desses alivia a alma, mente e o caralho. Estou
louco para consumir e tapar lacunas. Nenhuma
oferta; e é o sol que me consome. Ar abafado e meninas lindas palrando com
gosma de lesma nos lábios.
IX
Almoço sem graça, sozinho.
Envergonhado num canto. Nenhuma palavra. Sou surdo-mudo. Palavras geram
desconforto e dor. Escondo choro no saleiro. Engulo a tristeza co'a comida
morta-processada que prende no esôfago. Tudo burocraticamente inócuo. Inclusive
comer.
X
Se faltasse luz todos iríamos
embora. A luz realmente cai. Há um despontamento postiço. A eletricidade volta
em seguida. As máquinas funcionam que é uma maravilha. Todos corrigem alegrias.
Mais um dia igual. Eu é que não funciono como deveria. Fico louco a prestação...
XI
A ideia flácida de mostrar
sentidos, sentimentos, pontos de vista. Ninguém liga. Há gente demais sem perna,
sem braço, sem casa. Por que alguém se importaria com sentimentos e vazio de
existir? Se eu me matasse, talvez me levassem a sério. Percebessem que estou
aleijado por dentro. Mas não valeria à pena. Escrever é a forma mais saudável
de morrer.
XII
Eu bebia religiosamente.
Aguardente e outros substitutivos. Hoje estou sóbrio. Oito meses vendo tudo sem
a mente anuviada. Sem a alegria furta-cor que me ajudou sempre a escrever
canções. Já não morro de cirrose aos 49. Num pequeno gesto, mudei meu destino. Morro,
agora, aos 35, de desânimo.
XIII
Clara chega de amarelo-alegria. Bela
e sensível. Fala coisas bonitas e eu acordo um pouco. Clara tem um jardim. Pessoas
felizes geralmente tem um jardim para cuidar. Acho que um dos segredos da vida
é ter um jardim. Enquanto não tenho meu jardim, tomo fármacos que me fazem adormecer.
O melhor que tenho feito é dormir.
6 comentários:
Leo! Tu tá escrevendo muito! Que lindeza tudo! Parabéns! Essa acidez me comove.
Muito obrigado por prestigiar meus escritos. Eu não tinha certeza de que valiam algo esses sketches desajeitados. Obrigado mesmo. É um grande incentivo! Bj
Uma boa dose de pessimismo para um domingo de esperas... nada melhor! Gostei da tua escrita :-)
Ah, Vanessa! Fico grato com tuas palavras! Teu comentário me dá alegria e incentivo. Abração.
Buenas, se o cara tá escrevendo não pode tá morto... Saudades do Amigo!
E aí Mr. Estima! Estou vivo, sim! obrigado por visitar meu blog! Saudades, também, brother! Abração!
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