sábado, 14 de dezembro de 2013

Depois de dez anos, respondo tua carta...


Não, querida, não creio que seja loucura. Como creio, também, que não é loucura te responder somente 10 anos depois. “O eu é outro”, já dizia Rimbaud. Que essa citação sirva de mote para o começo dessa conversa.

 

De lá para cá, a configuração da minha vida mudou bastante. 10 anos tem um peso imensurável em nossas vidas, sob muitos aspectos. Mas te digo que continuo perdido. Há muita névoa e uma mitologia obscura, obra do medo, da insegurança que ainda me assalta. E muitas vozes. Provavelmente eu esteja mais perdido do que antes.

 

Eu? Quem eu sou, afinal? Se não descobrir a tempo, pratico a autofagia.

 

Lembro que tua carta era para Almafuerte. Mas o Léo também tomou a liberdade de ler. Na época eu era mais Léo que tudo nessa vida. Léo se sobrepôs ao Almafuerte e seguiu sua vida de excessos, buscando a embriaguês e a luxúria que tanto almejava. Talvez não tenha dado crédito às linhas que me escreveste, na melhor intenção: a cura.

 

Mas Léo acabava sempre sozinho, apagado numa parada de ônibus, caído em algum banheiro sujo, todo manchado de vinho e vômito. Nunca conseguiu a vida luxuriosa porque, na maioria das vezes, era um bêbado asqueroso.

 

Houve uns 2 anos de intervalo:  Almafuerte amou e perdeu a personalidade por inexperiência no amor. Guarda boas lembranças. O tentame o ajudou a crescer, ou a ser menos ingênuo. Mas acabou. Acabou porque tudo na vida é provisório.

 

Léo voltou! Fez louvores: foi expulso de bares, usou liambas, mijou em uma igrejas e continuou órfão da luxúria. Chorou. Enganava-se com uma sexualidade solitária.

 

Esporadicamente Almafuerte voltava. Apaixonando-se fácil, igual donzela fictícia de livro para moçoilas; amargando amores não correspondidos. Almafuerte sempre foi o autor: é dele a sensibilidade para a poesia, à música. E é ele que lê e se deleita com bons autores e boa música. No entanto, não sabe esconder que é vulnerável demais.

 

Há duas notícias:

 

Léo está morrendo! Parou de beber, de sair. Tornou-se uma freira. O que sobrou dele é a virilidade agreste, mas contida, oprimida, escondida, como moléstia vergonhosa.

 

Almafuerte, este está cada vez mais escasso. Só escreve por extrema dor ou quando se sente vazio, igual uma sacola nojenta de supermercado, voando ao gosto do vento.  Tudo por que há um terceiro: Almada!

 

Almada dorme, esse é seu talento. Um homem sem biografia. Funcionário público. Sempre cansado; é magro, de fundilhos caídos e fuma 2 maços de cigarro por dia. E não se entusiasma com nada. Titubeia sempre, não fala. Tem preguiça de pensar. Olha inerte para a tela do computador. Lê bulas de remédios com volúpias de aumentar o seu tédio.

 

Léo vive numa penumbra. De vez em quando sonha em morar num lupanar, sonha com mulheres carnudas, vulvas aromáticas. Sente-se culpado por tais sonhos e volta para a Solombra.

 

Após intervalos, cada vez mais alongados, Almafuerte abrolha. Escreve, tem planos mil. Produz deitado, bebendo chá de alcachofra.  Mas Almada toma dois Rivotril e adormece Almafuerte.

 

Eu (ou nós?) sempre te invejei (invejamos), querida. Uma inveja boa, se é que é possível um sentimento tão contraditório. Pois a inveja é um anseio malfazejo. Admirei-te (fica melhor assim). Viveste teu período de hedonismo quando tinhas que viver, foste sensível quando tinhas de ser. Foste amada por muitos. Partiste corações.  Era a vingança concretizada.  Ainda há uma legião de apaixonados por ti. Os 10 anos te engrandeceram. Claro, não sei como estás por dentro. Espero que bem, sem muitas inquietações.

 

Mas voltando as minhas personas: Almada comanda e ninguém ama Alamada. É insípido, inodoro, sem cor. Tem a voz que como se fosse um pingo discreto caindo da pia.

 

Minha esperança é Almafuerte. Mas não sei se ele consegue sozinho. Sente falta do Léo. Apesar de todos os defeitos, Léo possuía o olhar de leão, gritava com o violão em punho, como metralhadora, sangrando as cordas vocais. Léo, que quando não estava em quase coma alcoólico, era expressivo, simpático e bem-humorado. Parecia ter uma personalidade forte. Mas hoje Léo é um epitáfio.

 

Tua carta terminava com os dizeres: paz e harmonia.

 

Ainda não consegui ( ou conseguimos) paz e harmonia. Hoje, sim, preciso da tua ajuda. Mais do que 10 anos atrás, tempo em que eu estava absorto em ser Léo.

 

Acho que é Almafuerte que escreve esta carta. Ele quer chorar no teu ombro. Se sente um desgraçado, embora seja abençoado em muitos aspectos. E pede desculpas pela pequena demora em responder.

 

Post Scriptum: Nós éramos incipientes demais para conhecer e adotar William Blake e Herman Hesse. Mas não sei se faria diferença.

 

3 comentários:

Vinícius Alves Hax disse...

Legal. Quem não tem dentro de si múltiplas vozes e personas?

Unknown disse...

Obrigado por visitar o blog, Vinícius! Complicado é quando elas entram em conflito. Uma quer se sobrepor em relação a outra(s). Nem sempre é fácil harmonizar essa multidão.

Vanessa Regina disse...

De muitos vários somos feitos. Eu que o diga...