Não, querida, não creio que seja
loucura. Como creio, também, que não é loucura te responder somente 10 anos
depois. “O eu é outro”, já dizia Rimbaud. Que essa citação sirva de mote para o
começo dessa conversa.
De lá para cá, a configuração da
minha vida mudou bastante. 10 anos tem um peso imensurável em nossas vidas, sob
muitos aspectos. Mas te digo que continuo perdido. Há muita névoa e uma
mitologia obscura, obra do medo, da insegurança que ainda me assalta. E muitas
vozes. Provavelmente eu esteja mais perdido do que antes.
Eu? Quem eu sou, afinal? Se não
descobrir a tempo, pratico a autofagia.
Lembro que tua carta era para
Almafuerte. Mas o Léo também tomou a liberdade de ler. Na época eu era mais Léo
que tudo nessa vida. Léo se sobrepôs ao Almafuerte e seguiu sua vida de
excessos, buscando a embriaguês e a luxúria que tanto almejava. Talvez não
tenha dado crédito às linhas que me escreveste, na melhor intenção: a cura.
Mas Léo acabava sempre sozinho,
apagado numa parada de ônibus, caído em algum banheiro sujo, todo manchado de
vinho e vômito. Nunca conseguiu a vida luxuriosa porque, na maioria das vezes, era
um bêbado asqueroso.
Houve uns 2 anos de intervalo: Almafuerte amou e perdeu a personalidade por inexperiência
no amor. Guarda boas lembranças. O tentame o ajudou a crescer, ou a ser menos
ingênuo. Mas acabou. Acabou porque tudo na vida é provisório.
Léo voltou! Fez louvores: foi
expulso de bares, usou liambas, mijou em uma igrejas e continuou órfão da
luxúria. Chorou. Enganava-se com uma sexualidade solitária.
Esporadicamente Almafuerte
voltava. Apaixonando-se fácil, igual donzela fictícia de livro para moçoilas; amargando
amores não correspondidos. Almafuerte sempre foi o autor: é dele a
sensibilidade para a poesia, à música. E é ele que lê e se deleita com bons autores
e boa música. No entanto, não sabe esconder que é vulnerável demais.
Há duas notícias:
Léo está morrendo! Parou de
beber, de sair. Tornou-se uma freira. O que sobrou dele é a virilidade agreste,
mas contida, oprimida, escondida, como moléstia vergonhosa.
Almafuerte, este está cada vez
mais escasso. Só escreve por extrema dor ou quando se sente vazio, igual uma
sacola nojenta de supermercado, voando ao gosto do vento. Tudo por que há um terceiro: Almada!
Almada dorme, esse é seu talento.
Um homem sem biografia. Funcionário público. Sempre cansado; é magro, de
fundilhos caídos e fuma 2 maços de cigarro por dia. E não se entusiasma com
nada. Titubeia sempre, não fala. Tem preguiça de pensar. Olha inerte para a
tela do computador. Lê bulas de remédios com volúpias de aumentar o seu tédio.
Léo vive numa penumbra. De vez em
quando sonha em morar num lupanar, sonha com mulheres carnudas, vulvas
aromáticas. Sente-se culpado por tais sonhos e volta para a Solombra.
Após intervalos, cada vez mais alongados,
Almafuerte abrolha. Escreve, tem planos mil. Produz deitado, bebendo chá de
alcachofra. Mas Almada toma dois Rivotril
e adormece Almafuerte.
Eu (ou nós?) sempre te invejei
(invejamos), querida. Uma inveja boa, se é que é possível um sentimento tão
contraditório. Pois a inveja é um anseio malfazejo. Admirei-te (fica melhor
assim). Viveste teu período de hedonismo quando tinhas que viver, foste
sensível quando tinhas de ser. Foste amada por muitos. Partiste corações. Era a vingança concretizada. Ainda há uma legião de apaixonados por ti. Os
10 anos te engrandeceram. Claro, não sei como estás por dentro. Espero que bem,
sem muitas inquietações.
Mas voltando as minhas personas: Almada comanda e ninguém ama Alamada.
É insípido, inodoro, sem cor. Tem a voz que como se fosse um pingo discreto
caindo da pia.
Minha esperança é Almafuerte. Mas
não sei se ele consegue sozinho. Sente falta do Léo. Apesar de todos os
defeitos, Léo possuía o olhar de leão, gritava com o violão em punho, como
metralhadora, sangrando as cordas vocais. Léo, que quando não estava em quase
coma alcoólico, era expressivo, simpático e bem-humorado. Parecia ter uma
personalidade forte. Mas hoje Léo é um epitáfio.
Tua carta terminava com os
dizeres: paz e harmonia.
Ainda não consegui ( ou conseguimos)
paz e harmonia. Hoje, sim, preciso da tua ajuda. Mais do que 10 anos atrás,
tempo em que eu estava absorto em ser Léo.
Acho que é Almafuerte que escreve
esta carta. Ele quer chorar no teu ombro. Se sente um desgraçado, embora seja
abençoado em muitos aspectos. E pede desculpas pela pequena demora em responder.
Post Scriptum: Nós éramos
incipientes demais para conhecer e adotar William Blake e Herman Hesse. Mas não
sei se faria diferença.
3 comentários:
Legal. Quem não tem dentro de si múltiplas vozes e personas?
Obrigado por visitar o blog, Vinícius! Complicado é quando elas entram em conflito. Uma quer se sobrepor em relação a outra(s). Nem sempre é fácil harmonizar essa multidão.
De muitos vários somos feitos. Eu que o diga...
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