quarta-feira, 4 de maio de 2011

Carta de amor


Igual a tudo que sempre consideraste
Excentricidade de minha parte
Serás a primeira a saber da última:
Eu decidi morrer.

Talvez seja uma forma de protesto.
(tu nunca entendeste
meus protestos...)
De qualquer forma vou te contar:

Várias vezes vi gente catando lixo para comer
Várias vezes vi homens em empregos vis
Amaciando a vida com aguardente
Vi mulheres sujas, sem lar, à calçada
Abraçadas a sua prole.

No forte do inverno desta cidade indiferente
Vi gente usando papelão como se fosse cobertor
No olho do cu da rua
Assisti, com tristeza no olhar,
O trabalho infantil no centro da cidade
Meninas se prostituindo
Para por um pouco de alucinógeno

Vi todo esse tipo de humilhação
Que já deves conhecer
Miríades de formas em que o ser humano
Acaba rebaixado.
Mas fica tranquila, não vou gastar tua beleza
Com mais cenas desse tipo

Ah, tu que te emociona com novelas
Com filmes de amor adolescente
Mas não presta a mínima atenção
Para o mundo desolado que te rodeia!

Pois bem, eu fiquei revoltado
Com esse apego à vida
Essa maldita vontade geral de continuar vivendo
De tanta gente que, sem perceber, já morreu
E me dei conta que também estou morto
Eu também sou mendigo
Catando comiseração à beira do caos
E percebi que a vida vale tão pouco
Que se não me matar amanhã
Poderei ser humilhado pelo câncer
(Eu que já nasci humilhado com a grande
"humildade" de ser nada)
Por qualquer outra doença que transforma o ser em bosta
Eu que já sou mendigo.
(deves entender quando uso esta expressão)
Sim querida, vou morrer.
Não sei quando irás ler esta carta patética
Mas eu, até lá, estarei perfeitamente morto
Sem mágoa sem nada
Simplesmente morto.

Para usar uma expressão da tua vida automática
(que já não será mais minha)
Delicadamente
Decididamente
aperto a tecla STOP.*


                        Leonardo Alves

*Este poema talvez faça parte da "obra em progresso" que venho trabalhando desde 2007. Trata-se de um poema fragmentado e polifônico, cujo tema gira em torno das mazelas urbanas. 

2 comentários:

Instrutor Tiago disse...

Sinceramente, eu adorei esse poema.
Me sinto orgulhos de saber que esse cara é um dos meus irmãos de alma que tenho.
Parabéns por tudo que foi escrito, dito e lido. Agradeço muito por ter tuas letras para ler e sorrir com a profundidade de tua escrita.

Unknown disse...

Fico feliz que tenhas gostado do texto. Obrigado por acompanhar esse humilde espaço. Os amigos são a família que a gente escolhe.
Abração.