segunda-feira, 16 de maio de 2011

Subsolo

Prefácio assaz interessante  para Subsolo



Depois da leitura assídua de poetas como Rimbaud, Latréamont e Blake, me senti suficientemente inspirado para compor um texto em prosa poética, em forma fragmentada. Na verdade é um ensaio, um experimento. Os textos que me serviram de inspiração são todos bastante antigos, no entanto, pelo menos para meu entendimento, continuam sendo o que de mais subversivo a poesia nos deu. Na verdade, sem Rimbaud não haveria modernismo. Não haveria poesia Beat, Imagismo (Pound), etc.
 Mas o meu tema central  é contemporâneo ou, pelo menos,  é um tema recorrente que se aplica aos dias de hoje. O mal estar do indivíduo no mundo, sem maiores perspectivas, dando-se conta de que terá de enfrentar sua dor sem a presença da religião. Eu tenho certas dúvidas com relação à qualidade desse texto. Pode ser um amontoado de merda, mas é provável que tenha um certo valor. Na verdade eu não sou seguro com nada que tenha escrito. Mas ontem, lendo uma entrevista de T. S. Eliot, descobri que até um grande poeta como o autor de Ash Wednesday trazia consigo essa desconfiança: “Poeta honesto algum pode jamais estar inteiramente certo do valor permanente daquilo que escreveu. É possível que tenha desperdiçado seu tempo e feito uma mixórdia de sua vida a troco de nada”.

Estou me alongando neste prefácio e o leitor tem pressa. Mas já está acabando. Cabe dizer, finalmente, que esta não é a versão definitiva. Mas acredito que nenhum poema que postei neste blog esteja em sua versão definitiva. Na verdade essa é um ótima desculpa para a minha preguiça de aparar as arestas desses textos. Não posso dizer: ‘boa leitura’, para meus poucos leitores. Soaria irônico. Então, que vocês tenham a benevolência de ler este humilde texto. Obrigado...




I


Não sei como desci neste inferno. Talvez uma vida cheia de subsolos. Talvez uma angústia sangüínea, uma dor secular ausente dos livros de história. Talvez eu estivesse predestinado a esta aventura. Mas não sei. Se eu fosse bom, realmente, iria dilacerar meu orgulho nestas pedras, comê-lo como se fosse meu almoço. É possível viver sem vida espiritual, sem álcool, sem drogas?  É possível alimentar-se somente de auroras e silêncios? Se deus tivesse a decência de aparecer eu me converteria. Nunca fui calmo para desejar uma vida estóica. O que me resta é antecipar minha sorte. Se eu sobreviver, serei um faz de conta, uma figura cômica a minha própria consciência. A única solução é renascer. Aquém. Responsabilidade, eu cumpro, pontualmente, massacrada-mente, mas estou cansado, desejo me embebedar, uma embriagues eterna, para que eu possa viver sedado neste artifício plástico que denominaram mundo. Por que deus sendo bom, cultivaria no meu coração tamanha aflição, tamanhos dilemas? Por que deus, existindo, não se preocuparia com sua ovelha desgarrada, não se preocuparia com os miseráveis, muito mais miseráveis do que eu e que só querem um prato de comida? Por que não me fez sem capacidade de questionar, de lamentar?  Há tantos felizes que passam por mim, sem palavras amargas, sem dores na alma, apenas vivendo seu pedaço de existência. Por que não me fizeste assim? Por que ainda falo com um conceito, por quê? Em verdade, trago este cancro da alma, peço escusas, sou um fugitivo do rebanho, sou fraco demais para me sujeitar ao matadouro. Sou forte demais para aceitar este pedaço de pó, esta cinza de meus falecidos. Eu não aceito. E me revolto, como um menino que não ganhou seu doce. Revolto-me como uma menina contrariada. Mas tenho motivos. Os melhores. Talvez assim tenha sido criada a arte. A imortalidade inútil. Uma forma vaidosa de tecer uma lápide em cada livro, em cada música. A beleza não é o sublime. A beleza é um conceito antigo masturbado por gregos e romanos sem mais o que fazer. Lanço um projétil contra a beleza. Ela me aflige, detesto ter que percorrer o mundo, ter que decifrar enigmas para trazer esta meretriz ao meu colo. De uma metade de mim fiz um espantalho. Da outra fiz um encéfalo pensante, predestinado ao fim paupérrimo de não encontrar nada.


II

Não encontro nada de interessante em minha infância. É inútil vasculhar. Sempre fui assim. Acho que nasci com vinte e nove. Sempre estive entediado. As TVs eram em preto-e-branco e os filmes dublados. Nem no inferno se admite filmes dublados. A casa tinha corredor, mas era inútil percorrer. Descendo escadas, descendo. Jamais consegui extirpar essa mácula de meus nervos. Depois, de meus versos. Amigos imaginários, conversas ao corredor com ninguém. Um passado de fantasias. Um passado mendigo - é escusado insistir.


III

Alimentei-me da covardia. Sustentei meus ossos sem fraturas não lutando. E se lutasse, faria diferença? A brutalidade da batalha humana, os ferimentos na pele, a mutilação, não são nada comparada ao desejo logrado do infinito. Eu sempre desejei o intangível. Como alguém consegue ter certezas, quando nenhum milagre é efetuado? Um fim de tarde é apenas a constatação que a noite chega para pôr os curativos em nosso sentimento esvoaçante e febril. Tudo está parado, ninguém limpa a alma dos tolos de suas escrófulas, ninguém ressuscita os mortos. Todos estão preocupados com o presente e o futuro, um teto, uma ração diária. E vendem livros com os mistérios desvendados. É nessas horas que seria bom ressuscitar! Mas será possível uma harmonia sem afetação mística, sem entorpecentes, sem anestesia? Alimentei-me de covardias. Tenho algumas guardadas comigo. Mas tenho a coragem de renunciar ao espetáculo grotesco e condescende. Todos aceitam os fantasmas e monstros e os colocam na mesa, junto à família, todos lêem à vigarice metafísica, e fazem compras exorbitantes e acumulam medo de ficarem entediado olhando para o pôr-do-sol e não encontrar nada além de uma luz dizendo simplesmente que todos morrerão um dia.  


IV

Como Blake queria ter descoberto uma grande verdade. Mas nestes anos de inferno, descobri nada, a não ser exaltar minhas dúvidas. Mas ah, como duvido daqueles com certezas. Não passam de embustes! Enganadores, pilantras das verborragias. Como podem saber tanto? De onde vem tanta certeza. Uma das palavras mais idiotas é certeza. Certeza de quê? Eu prefiro minha alma despedaçada a um templo consolador. A consolação verdadeira não veio. Pessoas morrem como insetos. O mundo engole os mais fracos, a verdade é que temos pouco tempo. Só isso. E a pragmática me aflige...


V

O que há de vida num quarto de hotel? O que há de verdade na existência fria de um condenado? Rilke não resumiu a questão? Eliot não foi suficiente claro? Pound não mostrou a verdade? Sei que passo os dias aqui, olhando pela janela. Às vezes, cedo ao ímpeto de sair. Deparo-me com a hostilidade do mundo, com a indiferença. Shakespeare definitivamente morreu, descubro, como um idiota. Volto para meu quarto de hotel.  Eu não faço diferença. Talvez eu seja a diferença em carne e osso. Mas na verdade ninguém faz diferença ou falta. O mundo está cheio de gente. Seria bom se existissem menos. É uma das razoes que me refugio em meu quarto. Queria eu ser forte, faria guerra a este torvo aspecto da noite, a este mudo aspecto do dia. Mas a vida está cheia de exigências. Não me conformo. Não quero competir, já que não sou melhor que ninguém. Nasci para tentar o infinito. Tudo que é menos que o infinito, me cansa. Estou cansado, muito cansado. Nunca conheci que estivesse tão cansado quanto eu. Entro no quarto, tiro a roupa, durmo nu. Louco para que a noite tenha piedade de mim e não me faça acordar. Era isso que eu dizia para a analista. Ela ria, como se eu fosse o primeiro. Na verdade ela só consegue fingir melhor. Coitada.


VI


Aos dezessete descobri o tempo. Quanta demora para uma constatação evidente. Obviamente o tempo é mais complexo que James Joyce. Mais antigo que Homero. Mas é uma descoberta, quando temos consciência do caráter impalpável do tempo e, ao mesmo tempo de sua voracidade, comendo entranhas de pessoas que amamos. A antítese é tola, como qualquer poesia sincera e menor publicada em jornaleco de província. Desde então meu algoz é o tempo, essa coisa que mal existe e nos devora, enquanto não escrevemos o livro que não venderá, mas será lido no infinito, enquanto não escrevemos a nona sinfonia de Bethoven. Sentimos inveja do medíocre que faz suas asneiras na página dominical. Ah, meus mortos, como pesa o fato de vocês terem morrido!   Como pesa o fato de que seremos esquecidos. Mais uma vez a vaidade! A fraqueza. Ou o pouso para quem não encontrou o espírito de deus se movendo na face das águas. Toda arte que diz a verdade, falseada em sua ficção não acalma a aflição. A arte é uma vontade de destruição. A verdadeira arte nos deixa em dúvida, pois questiona o que ninguém teve tempo ou paciência de questionar. É por isso que sofremos. Nós, condenados a sentir. Por isso nos atiramos nesse poço mais escuro que noite, sem chance para sobrevivência. Mas é muita pretensão acreditar na posteridade. O mais fácil é liberar essa angústia sem fim.


VII

Enquanto praticamos nossa burocracia de sermos o que convém, a vida segue. Enquanto nos revoltamos por sermos parvos, a humanidade nos aplaude com crucifixos e pregos, intercalando o seu aspecto demoníaco, com uma religiosidade vinda o esfíncter. Eu escrevo porque estou cansado, eu escrevo por que sou impelido pela enfermidade, o cinismo não me agrada. Estou velho demais para a revolta. Ah vida, não tenho imaginação suficiente para te criar.


VIII

As mulheres que amei. Todas rindo de mim agora. Vestidas como lhes convêm. Sorrindo com os melhores dentes possíveis, com os maridos mais cretinos possíveis. Me vendo abjeto, bêbado e sem forças para dizer duas palavras agressivas. As mulheres que amei, todas de mãos dadas com seus respectivos amantes, sobranceiros espectadores, desejando que eu me encolha ao infinito, para comprovar a tese comum, entre todos, de eu sempre vali menos que um inseto. Todas. As mulheres que amei. Por que amei tantas se tão poucas me amaram? Por que inventamos um coração ao longo da vida, por que inventamos amores e deuses e noites de orgasmo?


IX

Então eu era um traidor, um Judas. Por assentar minhas dores neste padrão contemporâneo de mágoa? Mal sabiam meu nome. Tinham lido Fitzgerald e o Kamassutra. Ou qualquer coisa inútil e vinham me importunar, “Isso é de verdade. Isso é mais sério que seu trabalho de distorção dos ventos. Empresta-me uma lâmina. Posso cravar em meu braço sem sentir dor. Por que doeria? Isso não fere. A dor está em escrever, sentir, olhar para a solidão da noite, numa constatação de que cada vez o mundo se torna mais abjeto, cresce a grande cratera da falta de sentido em tudo. Mas, finalmente, não perca o espetáculo. Chame o Corcunda de Notre-Dame, a princesa, seus poetas preferidos. Eles nunca escreveram no próprio braço com tanta desenvoltura. Nunca usaram o próprio sangue numa construção de verdade tão palpável” Assim eu anunciava minha destruição.


X

Mas que tanto dinheiro eu precisava? Não era necessário apenas uma caneta e um papel? Um bocado de palavras para angariar a janta? Mas eu precisava de mais: provar que a inutilidade é possível. Provar que seriedade é um abismo jocoso. Meu joelho doía. Minha alma apodrecia. Nunca quis carregar livros debaixo do braço. Eles é que se atiravam por cima de mim, com seu cheiro a bibliotecas seculares, com cheiro a mortos, que continuavam adoecendo das enfermidades da vida. Mas resolvi ser sério. Não se pode ser um idiota com vinte e nove anos. Me vesti com o verniz da instrução. Adornando minha vaidade e culpa, concomitantemente. E o mundo seguiu. E desconheço as guerras, os crimes de tal época de minha existência. Sei que eu estava quase morto numa maca, com um monte de gente dizendo que a agonia não era o fim, com o padre fazendo sinal da cruz. Sempre achei graça desse gesto, fazendo sinal de cruz. Que coisa abominável não encarar o próprio sofrimento. Mas isso tudo passou.  Depois de muito tempo, o inferno foi consumido, o céu consumado. Era um mal estar. Quando as graves escrituras foram queimadas, o inferno deixou de existir.  Não, a rebelião não é pecado de feitiçaria, pois a ira abre portas, a consciência desnuda os mitos. De vez em quando, faz-se necessário imolar alguns deuses, para o bem da espécie. O homem não deve temer nenhum senhor a não ser ele próprio. Com o fim da borrasca, ainda resta este mal estar. Estar aqui. Mas isto não tem cura.

                                Leonardo Alves

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